Saiu do banheiro e foi para a cozinha, para supervisionar os finalmentes da refeição. Tinha convidado para jantar, como toda segunda à noite, o seu amigo Chick, que morava ali pertinho. Ainda era sábado, mas Colin estava com vontade de ver Chick e fazê-lo degustar o menu elaborado com uma alegria serena por Nicolas, seu novo cozinheiro. Chick também era solteiro. Tinha a mesma idade de Colin, vinte e dois anos, e gostos literários como os dele, mas tinha menos dinheiro. A fortuna de Colin era suficiente para viver com conforto, sem trabalhar para os outros, e Chick precisava ir todo dia ao ministério para ver o tio e pegar dinheiro emprestado, pois o ofício de engenheiro não rendia o necessário para se manter no mesmo nível dos operários sob seu comando, e é difícil comandar gente mais bem vestida e mais bem alimentada do que nós mesmos. Colin ajudava como podia, convidando-o para jantar sempre que possível, mas o orgulho de Chick o obrigava a ser prudente, e a não mostrar, por favores frequentes demais, que sua intenção era ajudar.
O corredor da cozinha era claro, com vidraças dos dois lados, e um sol brilhava de cada um dos lados, pois Colin gostava de luz. Havia torneiras de latão cuidadosamente polidas por todos os cantos. As brincadeiras do sol nas torneiras produziam efeitos feéricos. Os camundongos da cozinha gostavam de dançar ao som dos choques dos raios de sol nas torneiras e corriam atrás das bolinhas que os raios formavam ao se pulverizar no solo, feito jatos de mercúrio amarelo. Colin acariciou um dos camundongos ao passar, ele tinha compridíssimos bigodes pretos, era cinzento e magro, e milagrosamente lustroso. O cozinheiro os alimentava muito bem, sem deixá-los engordar muito. Os camundongos não faziam barulho durante o dia e só brincavam no corredor.
Colin empurrou a porta esmaltada da cozinha. O cozinheiro Nicolas vigiava o painel de bordo. Estava sentado diante de uma pequena mesa, igualmente esmaltada de amarelo-claro e que tinha mostradores correspondentes aos diversos utensílios culinários alinhados pelas paredes. O ponteiro do forno elétrico, ajustado para peru assado, oscilava entre “quase” e “ao ponto”. Logo, logo estaria na hora de tirar. Nicolas apertou um botão verde, que acionava o medidor sensitivo. Este penetrou sem encontrar resistência, e nesse momento o ponteiro marcou “ao ponto”. Num gesto rápido, Nicolas desligou o forno e ligou o aquecedor de pratos.
– Será que está bom? – perguntou Colin.
– Não tenha a menor dúvida, senhor! – afirmou Nicolas. – O peru estava perfeitamente calibrado.
– Que entrada o senhor preparou?
– Meu Deus – disse Nicolas –, para variar, não inovei coisa nenhuma. Limitei-me a plagiar Gouffé.
– O senhor poderia ter escolhido um mestre pior! – observou Colin. – E que parte da obra dele vai reproduzir?
– Está na página 638 de seu Livro de cozinha. Vou ler a passagem em questão.
Colin sentou-se num tamborete com assento capitonê de borracha alveolada, sob uma seda que combinava com a cor das paredes, e Nicolas começou nos seguintes termos: “Faça uma crosta de patê quente para a entrada. Prepare uma enguia das grandes e corte-a em pedaços de três centímetros. Leve a uma panela, com vinho branco, sal e pimenta, cebolas fatiadas, ramos de salsa, endro e louro, com um dentinho de alho”.
– Não consegui amolar o dente como gostaria – disse Nicolas. – A pedra de afiar está gasta.
– Vou mandar comprar outra – disse Colin.
Nicolas continuou: “Ponha para cozinhar. Retire a enguia da panela e ponha numa frigideira. Passe o molho por uma peneira de tecido, acrescente molho espanhol e deixe reduzir até que fique aderente à colher. Filtre novamente, cubra a enguia com o molho e deixe ferver por dez minutos. Acomode a enguia na massa. Faça um cordão de cogumelos em torno da crosta, ponha uma pitada de sêmen de carpa no meio. Regue com a parte do molho que ficou reservada”.
– Certo – aprovou Colin. – Acho que o Chick vai gostar.
– Não tenho a vantagem de conhecer o senhor Chick – concluiu Nicolas. – Mas, caso ele não goste, farei outra coisa da próxima vez, o que vai me permitir me situar, com quase certeza, na ordem espacial de seus gostos e desgostos.
– Zim!… – disse Colin. – Vou embora, Nicolas. Vou pôr a mesa.
Ele foi pelo corredor no outro sentido e atravessou a copa para chegar à sala de jantar-estúdio, cujo tapete azul-pálido e as paredes bege-rosadas eram um repouso para olhos abertos.
Daquela sala, de uns quatro metros por cinco, via-se a avenida Louis Armstrong por duas grandes janelas. Espelhos sem aço escorriam pelos dois lados e permitiam a introdução dos odores da primavera quando eles estivessem disponíveis do lado de fora. Do outro lado, uma mesa de carvalho macio dominava um dos cantos do ambiente. Dois bancos em ângulo reto correspondiam a dois lados da mesa, e cadeiras estofadas com almofadas de marroquim azul ornavam os dois lados livres. A mobília incluía, além disso, um móvel comprido e baixo, transformado em discoteca, uma vitrola
hipermodulada e um móvel, simétrico ao primeiro, contendo estilingues, pratos, copos e outros utensílios de que o homem civilizado se serve para comer.
Colin escolheu uma toalha de mesa azul-claro, combinando com o tapete. Dispôs, no centro da mesa, uma travessa com um vidro de formol em cujo interior havia dois embriões de frango que pareciam fazer a mímica de O espectro da rosa, na coreografia de Nijinski. Ao redor, alguns ramos de acácia em fitas: o jardineiro de uns amigos a obtinha a partir do cruzamento da acácia em cachos com aquelas fitas de alcaçuz que se encontram nas vendinhas de porta de escola. Depois ele pegou, um para cada um, dois pratos de porcelana branca incrustados de ouro translúcido, talheres de aço inoxidável com o cabo perfurado, com uma joaninha empalhada em cada um deles, isolada entre duas plaquinhas de plexiglas, para dar sorte. Acrescentou taças de cristal e guardanapos dobrados em forma de chapéu de padre; isso levava um certo tempo. Mal terminara esses preparativos e a campainha se soltou da parede e o avisou da chegada de Chick.
Colin desfez um vinco da toalha e foi abrir.
– Como vai? – perguntou Chick.
– E você? – replicou Colin. – Tira a capa de chuva e vem ver o que o Nicolas está fazendo.
– O novo cozinheiro?
– É – disse Colin. – Troquei com a minha tia pelo antigo, mais um quilo de café belga.
– E ele é bom de serviço? – perguntou Chick.
– Parece que sabe o que faz. É discípulo do Gouffé.
– O homem do crime da mala? – quis saber Chick, horrorizado, e seu bigodinho preto abaixou-se tragicamente.
– Não, cretino, Jules Gouffé, o cozinheiro conhecidíssimo!
– Ah, é que… – disse Chick – fora Jean-Sol Partre, não sou muito de ler…
Ele seguiu Colin pelo corredor de ladrilhos, fez um carinho nos camundongos e abasteceu, enquanto isso, seu isqueiro com algumas gotículas de sol.
– Nicolas – disse Colin, ao entrar –, eu lhe apresento o meu amigo Chick.
– Olá, senhor – disse Nicolas.
– Olá, Nicolas – respondeu Chick. – O senhor não teria uma sobrinha chamada Alise?
– Tenho, sim, senhor – disse Nicolas. – Uma beleza de menina, se o senhor me permite o comentário.
– Vocês realmente parecem ser da mesma família – disse Chick. – Embora na parte do busto haja algumas diferenças.
– Sou bem troncudo – disse Nicolas –, e ela se desenvolveu mais no sentido perpendicular, se o senhor me permite fazer essa precisão.
– Pois é – disse Colin –, aqui estamos, quase em família. O senhor não me disse que tinha uma sobrinha, Nicolas.
– Minha irmã não deu certo, senhor – disse Nicolas. – Estudou filosofia. Não é o tipo de coisa de que a gente goste de se gabar numa família orgulhosa de suas tradições…
– É… – disse Colin. – Acho que o senhor tem razão. Compreendo, pelo menos. Mostre-nos então esse patê de enguia…
– Pode ser perigoso abrir o forno agora – preveniu Nicolas. – Poderia desencadear uma desidratação devido à introdução de ar menos rico em vapor d’água do que aquele que se encontra encerrado lá dentro.
– Prefiro ter – disse Chick – a surpresa de ver primeiro na mesa.
– Só me resta apoiá-lo, senhor – disse Nicolas. – Posso me permitir pedir aos senhores o obséquio de me autorizarem a retomar o meu trabalho?
– Faça isso, Nicolas, por favor.
Nicolas retomou sua tarefa, que consistia em desenformar gelatinas de filés de linguado, incrustados de lâminas de trufas, destinadas a compor a entrada de peixe. Colin e Chick saíram da cozinha.
– Quer um aperitivo? – perguntou Colin. – Meu pianoquetel está pronto, você pode experimentar.
– Funciona? – perguntou Chick.
– Perfeitamente. Foi difícil acertar o ponto, mas o resultado está além do que eu esperava. Consegui, a partir de “Black and Tan Fantasy”, uma mistura realmente assombrosa.
– Qual é o princípio? – perguntou Chick.
– A cada nota – disse Colin – faço corresponder uma bebida, um licor ou um aromatizante. O pedal forte corresponde a um ovo batido, e o pedal doce, ao gelo. Para a soda, basta um toque no registro agudo. As quantidades são calculadas na razão direta da duração: à semifusa equivale um dezesseis avos de dose, à semínima uma unidade, à semibreve o quádruplo da dose. Quando tocamos uma peça lenta, aciona-se um sistema de registro de modo que a quantidade não seja aumentada, o que daria um coquetel grande demais, mas o teor de álcool, sim. E, de acordo com a duração da peça, podemos, se quisermos, fazer variar o valor da dose, reduzindo-a, por exemplo, a um centésimo, para obter uma bebida que leve em conta todas as harmonias, por meio de uma regulagem lateral.
– É complicado – disse Chick.
– O conjunto é comandado por contatos elétricos e relés. Não vou te dar detalhes, você sabe do que eu estou falando. E, além do mais, o piano funciona de verdade.
– É maravilhoso! – disse Chick.
– Só tem uma coisa chata – disse Colin –, é o pedal forte para o ovo batido. Precisei pôr um sistema de engate especial, porque, ao tocar um música mais hot, vêm uns pedaços de omelete no coquetel, é difícil de engolir. Vou mudar isso aí. Por enquanto, é só prestar atenção. Para creme de leite, sol grave.
– Vou fazer um “Loveless Love” – disse Chick. – Vai ser demais.
– Ainda está no meio do muquifo que virou minha oficina – disse Colin –, porque as placas de proteção ainda não estão parafusadas. Vem, vamos lá. Vou ajustar para dois coquetéis de uns duzentos mililitros, só para começar.
Chick foi para o piano. Ao fim da peça, uma parte do painel da frente se abriu num golpe seco e apareceu uma fileira de vidros. Dois deles estavam cheios até a boca de uma mistura apetitosa.
– Fiquei com medo – disse Colin. – Teve uma hora em que você tocou uma nota errada. Felizmente, estava na harmonia.
– Isso aí considera a harmonia? – disse Chick.
– Não completamente – disse Colin. – Seria complicado demais. Só tem alguns recursos. Bebe e vem pra mesa.