Charles Kiefer
E este cheiro de carne de porco assada, doce e meio quente, a invadir meu nariz? Respiro fundo, com lentidão, e concentrado. As lembranças, registradas nas antigas sinapses, retornam. O cheiro gera as lembranças? As lembranças geram o cheiro?
Assim que o espectro de minha mãe desapareceu, um odor de louro, orégano, pimenta e acidez de vinagre, madeira envernizada, linóleo e banha de porco também ocupou o ar do quarto, no hospital. Tensões e ambientes hostis parecem acionar minha memória olfativa. Às vezes, no tribunal, diante do juiz, ou na rua, por conta de alguma estupidez de trânsito, sou transportado ao passado e revivo sensações antigas, em que se misturam temperos e obsessões.
A razão do olor, aqui e agora, é bem mais prosaica, conforme pude constatar ao descer à cozinha. Ana está assando um pernil. De vez em quando, Helena, excessivamente carnívora, apesar da minha indisposição, exige que a carne do animal de pés partidos venha à mesa. Mariana e Isabela adoram carne de porco frita em panela de ferro — ao alho e óleo, com aipim cozido polvilhado com farofa — ou assada no forno, com guarnições de pêssego e abacaxi. Não imponho a ninguém a minha vontade, mas não me obriguem a fazer o que não quero. Helena já não insiste, mas Isabela, de vez em quando, ainda me provoca:
— Come um pedacinho, papai.
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Dia de Matar Porco. Cap. 3. Porto Alegre : Dublinense, 2014. [E-Book pos. 36 de 114].
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