Comilança em A Montanha mágica de Thomas Mann (1924)

 — Não é comigo! — disse Hans Castorp, voltando a sentar na extremidade da mesa, entre a costureira e a inglesa, e desdobrou resignadamente o guardanapo, embora ainda se sentisse abarrotado do café da manhã. — Não senhor, não é comigo — repetiu. — Deus me livre! Nunca tomo leite, e ainda menos a esta hora. Não poderia arranjar alguma porter? — dirigiu-se à anã, com toda a amabilidade e delicadeza. Infelizmente não havia. Mas a criada prometeu trazer-lhe cerveja de Kulmbach, e de fato voltou ela pouco depois. Era uma cerveja preta, espessa, com uma espuma parda, e substituía perfeitamente a porter. Hans Castorp bebeu com avidez, de um alto de meio litro. Acompanhou a bebida de presunto com pão torrado. Novamente foi servido mingau de aveia, e novamente muita manteiga e fruta. Ele limitou-se a contemplar tudo isso, já que não se sentia capaz de comer mais.

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Para o jantar, mudou cerimoniosamente de traje. Comeu então -sentado entre Miss Robinson e a professora — sopa Julienne, carne frita com legumes, dois pedaços de uma torta que continha simplesmente tudo — amêndoa, creme de manteiga, chocolate, confeitos e maçapão —, bem como um excelente queijo acompanhado de pão integral. Novamente mandou vir uma garrafa de cerveja de Kulmbach. Mas, após ter bebido metade do alto copo, percebeu nitidamente que o lugar que lhe convinha era a cama.

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— Perfeitamente! Magnífico! — exclamou Peeperkorn, empertigando-se. Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial. Até mesmo uma covinha de sibarita assomou-lhe subitamente na face. “Eis que está próxima a hora...” E pediu o cardápio. Colocou no nariz um pincenê com aros de chifre, e cuja ponte se erguia na altura da testa. Encomendou champanha, três garrafas de Mumm & Cia.,Cordon rouge, très sec, acompanhadas de petits fours, pequenas guloseimas, deliciosas e coniformes, com uma saborosa massa cor de barro, revestida de um glacê de açúcar, recheadas de cremes de chocolate e de pistache, e oferecidas sobre papeizinhos com beiras rendadas. A Sra. Stöhr lambia os dedos ao prová-las. O Sr. Albin, com uma calma displicente, libertou a primeira rolha da sua gaiola de arame e deixou o cogumelo de cortiça desprender-se do gargalo adornado, com o estalo de uma pistola de criança, e saltar até o teto. Em seguida, conforme a tradição elegante, embrulhou a garrafa num guardanapo, antes de despejar o vinho. A nobre espuma molhou o linho das toalhas que cobriam as mesinhas auxiliares. Fizeram tinir as taças, e esvaziaram-nas de um só trago. O estômago sentia-se eletrizado pelas cócegas do líquido gelado e aromático. Os olhos começaram a brilhar. O jogo ficara interrompido, sem que se dessem o trabalho de recolher as cartas e o dinheiro espalhado na mesa. A roda abandonou-se a um deleitoso far niente, mesclado com uma conversação sem nexo, cujos elementos cada um extraía da sua sensibilidade aguçada; elementos sumamente promissores na sua fase primitiva, mas que no caminho à expressão se haviam transformado numa algaravia fragmentária, entaramelada, entre indiscreta e incompreensível, capaz de envergonhar ou enfurecer qualquer pessoa sóbria que a ouvisse. A essa altura, porém, os comensais suportavam-na sem nenhuma objeção, visto se acharem todos no mesmo estado. Até a Sra. Magnus tinha as orelhas rubras e alegava sentir como a vida pulsava nas suas veias; afirmação de que o marido parecia gostar pouco. Hermine Kleefeld, recostando-se ao ombro do Sr. Albin, estendia-lhe a taça para que a enchesse de vinho. Peeperkorn dirigia a bacanal com esmerados gestos dos dedos de unhas pontudas. Também providenciou o abastecimento e os reforços. Depois do champanha, mandou trazer café, moca fortíssimo, que vinha novamente acompanhado de “pão” e, para as senhoras, de licores doces, mas picantes, como são apricots brandy, chartreuse, creme de vanille emaraschino. Mais tarde apareceram ainda filés de peixe avinagrado e cerveja, e finalmente chá, de duas espécies, chá chinês e chá de macela, para quem não preferisse conservar-se fiel ao champanha ou aos licores, ou ainda voltar a beber um vinho genuíno. Assim fazia Mynheer, cujo processo de purificação íntima progredira, depois da meia-noite, em direção a um tinto suíço de um bouquet ingênuo, que tomava em companhia de Mme. Chauchat e de Hans Castorp, e do qual emborcava taça após taça, como para saciar uma sede real.

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Entraram num restaurante, comeram e beberam, completamente fora de hora, mas com um apetite inflamado pela tácita recordação da águia. Houve um banquete e uma bebedeira daquele tipo que Mynheer frequentemente organizava, também fora do Berghof, onde quer que se encontrassem, em Platz ou na “aldeia”, ou numa estalagem de Glaris ou de Kloters aonde haviam ido num trenzinho de excursão. Sob as suas ordens de soberano, consumiam então dádivas clássicas, como café com creme, acompanhado de pães rústicos, de suculentos queijos e da aromática manteiga dos Alpes, que conservava o mesmo sabor excelente quando servida com castanhas assadas. Tudo isso era regado a vinho tinto de Valtelina, que se tomava à vontade.