Cozinha Paraibana em 'A Última Quimera' romance histórico sobre Augusto dos Anjos de Ana Miranda (1995)
As dificuldades de Augusto me davam uma imensa angústia. Mas quando me deparei com a realidade de sua miséria fui tomado de uma verdadeira ternura e tive vontade de chorar. Ofereci-lhe como empréstimo uma boa quantia mas ele, como sempre orgulhoso, recusou quase ofendido.
No momento em que me despedia dele, vi de relance a mesa da copa posta com apenas uma terrina de sopa e uma bandeja com fatias finas de pão. Isso devia ser humilhante para quem crescera num engenho de cana-de-açúcar. Talvez não fosse tão doloroso suportar o frio do Rio de Janeiro, a falta de espaço, a sujeira, a má vizinhança, o barulho. Mas a refeição de uma sopa rala devia ser para Augusto o maior de todos os insultos. No Engenho do Pau d'Arco se servia a mesa mais farta em toda a Várzea do Paraíba. As comidas preparadas por Donata e Librada eram deliciosas, só de pensar nelas sinto minha boca se inundar de saliva, meu nariz captura no ar a lembrança dos odores vindos da cozinha.
Aos domingos comíamos sarapatel de porco, servido com farinha seca e pimenta malagueta, algumas gotas de limão sobre a carne. Bebíamos vinho verde português, comprado em pipa na mercearia de Antônio Maia, na cidade da Paraíba. Mesmo criança eu já gostava de bebidas espirituosas. Até hoje perambulo pelos restaurantes do Rio de Janeiro em busca de um sarapatel parecido com aquele, mas em vão. Persigo pelas ruas a mágica impressão do odor, espalhado pela brisa, de carne fresca da chã-de-dentro, mocotó ou chambaril; ao fechar os olhos, na cama, vejo o pirão dourado; minha boca se enche de saliva quando penso no maxixe, quiabo ou jerimum-de-leite; passo a mão na seda de uma camisa e sinto a suavidade dos molhos de couve que cresciam no quintal da casa; verto lágrimas com saudades da bacalhoada das sextas-feiras; sinto meu estômago se revirando, com desejo de um bredo cozinhado no azeite, feijão e peixe de coco, servidos na Quaresma. E não há nenhum Natal em casa luxuosa no Rio de Janeiro que ofereça algo tão delicioso como os pastéis de nata da Librada, ou os filhoses de palito embebidos em mel claro, feitos por Donata.
As sobremesas do engenho também me deixaram impressão profunda. As frutas eram mais saborosas do que todas as que provei no Rio de Janeiro, mesmo as maçãs ou peras importadas não se igualam às bananas e laranjas que Donata preparava, em talhadas, misturadas com farinha, ou aos abacaxis, às perfumadas mangas, aos abacates.
O café que se tomava após as refeições era colhido na fazenda. Nunca havia aguardente à mesa, mas sempre um licor de cacau, ou de anis, importados. Na ceia, como no primeiro almoço, comíamos angu de caroço, broas de milho seco, canjica de milho verde, pamonha, raramente faltando macaxeira e inhame, e batata-doce, cozida ou assada.
Ao lado da casa-grande ficava um pomar, rodeado por uma cerca viva de limoeiros. Dava laranja, banana-maçâ, carambola, graviola, araticum, maçaranduba, jambo amarelo, abacaxi, jatobá, jenipapo, cajá, uma infinidade de frutas, lembro-me de todas elas, das cores de suas cascas, de seus perfumes, das épocas em que floresciam e frutificavam e de quais passarinhos gostavam de bicar essa ou aquela. Cultivadas apenas para os membros da família e os agregados, as frutas eram tantas que até as levávamos para serem vendidas nas feiras aos sábados, no povoado de Cachoeira, assim como farinha de mandioca, milho verde, fava, caldo de cana, mel, enfim, tudo que não era usado na alimentação dos moradores da casa-grande e dos cassacos. Em torno do pomar ficavam as roças bem cuidadas, que produziam com fartura. A vida no engenho tinha como centro a mesa de mogno da cozinha.
Quando saí do sobrado do cais Mauá, respirei fundo. O céu tinha se tornado cinza. Meus encontros com Augusto eram cada vez mais sufocantes. Um ano depois dessa visita, Augusto publicou seu livro de poesias, chamado desafiadoramente de Eu, apenas isso.