Fazendo Cuscuz no romance 'Outros Cantos' de Maria Valéria Rezende (2016)

 Já na madrugada seguinte àquela em que a conheci, Fátima mandou um menino buscar-me, antes de clarear o dia, como haveria de ser pelo resto das madrugadas, já que, com meus ouvidos urbanos e desacostumados, não bastavam os longínquos galos para me despertar.

“Agora, cuidar do cuscuz... Se você não aprender, vai comer o quê?” O cuscuz, Fátima repetiu várias vezes, não havia dúvida, a mesma palavra das vésperas de festa de minha família paulista, a mesma que me surpreendera no oásis argelino, na voz daquela outra, Fátima, ensinando-me a umedecer e acariciar a sêmola até que se cobrisse o fundo de um amplo al-gidar com uma grossa camada branca, leve e granulada, que o vapor transformaria no kuskus nosso de todo dia. Como hoje, uma palavra, uma imagem, um gesto bastavam para fazer ressurgir outros, lembranças, ao sabor dos acasos, como os vários rolos de um filme projetados fora de ordem, ajudando-me a reconhecer o desconhecido.

O alguidar de Fátima só continha milho amarelo, seco, duro, intragável. Espantei-me. Por que não pôs o milho seco de molho desde a véspera, como eu via Lupita fazer, com um punhadinho de cal virgem, para que estivesse amolecido e quase pronto para virar tortilla na manhã seguinte? “Quantas horas isto levará a ferver até alguém poder mastigar?” Perguntei. O riso da mulher, “Você já vai ver só quem é que vai mastigar esse milho... Traga o alguidar”.

Segui a mulher para o telheiro atrás da cozinha, sentou-se num tamborete ao pé de dois pesados discos de pedra áspera, sobrepostos, pousados sobre um cepo. O disco inferior levemente côncavo, com uma ranhura do centro à margem. Sobre este se encaixava perfeitamente o segundo, pouco menor, com um furo no meio e outro furo próximo à beira, no qual se engastava um bastão curto, de madeira lisa, polida por incontáveis mãos. Uma pequena mó manual, como eu nunca tinha visto, escultura tão refinada, objeto tão perfeito e arcaico quanto o metate de pedra no qual Lupita triturava seu milho branco para obter a massa a ser palmeada até tornar-se a fina tortilla de maíz, que me ensinou a vigiar e virar sobre o comal até cozê-la ao ponto certo.

Fátima agarrou a manivela com uma das mãos e pôs-se a girar o disco com ritmo continuado e firme, a outra mão tirando punhados de milho do alguidar e deixando-o cair depressa, grão por grão, no furo do centro. Uma farinha granulada escorria, amarela e brilhante, pela ranhura entre as duas pedras, enchendo aos poucos a panela de barro disposta no chão. Eu disse “Que lindo”, ela riu, “Quer fazer?”, “Quero, é claro!”. Comecei por tentar despejar o milho pelo orifício central, perdendo logo uma porção de grãos por não acertar com a direção e o ritmo, até que, entre risadas dela, das crianças e minhas, encontrei o gesto justo, “Agora toque também a pedra de moer que eu tenho mais o que fazer”, sorriso malicioso de Fátima, eu não entendi logo, peguei a manivela e tentei manter o giro da pedra. Nem com as duas mãos. “Quando serei capaz de comer do meu próprio cuscuz?”

Aprendi, antes do que esperava, a moer, na mó de Fátima, o milho comprado aos bocados com centavos poupados da água, a umedecer a massa ao ponto certo, a acomodá-la num pano de algodão sempre incrivelmente limpo, dar-lhe a forma do cuscuz, acomodá-lo perfeitamente na larga boca cônica abrindo-se acima do bojo redondo da cuscuzeira de barro, especialmente torneada para sua função, beleza de desenho e olaria, pô-lo a cozer no vapor da água fervendo no oco do bojo, manter o lume.