Camilança no Livro das Mil e Uma Noites — Anônimo

O SEXTO IRMÃO DO BARBEIRO

 [Continuei contando ao califa:] Já o meu sexto irmão, o de lábios cortados, empobrecera após ter sido rico. Certo dia, saiu à procura de algo com que matar a fome. Durante essa procura, estando ele numa estrada qualquer, avistou de repente uma bela casa com largo pátio e elevado portão, diante do qual havia servidores e criados, e ordens e proibições. Indagou sobre o dono da casa a alguém ali em frente, que lhe respondeu: “A casa pertence a um membro do clã barmécida”. Meu irmão avançou até os porteiros e lhes pediu uma esmola; disseram-lhe: “Entre por esta porta, pois lá dentro você receberá do dono da casa algo que irá apreciar”. Meu irmão entrou no pátio e caminhou por algum tempo, até chegar a uma construção graciosa em cujo centro havia um jardim que ele nunca vira igual. O piso da casa era acarpetado e suas cortinas estavam soltas. Perplexo, sem saber para que lado ir, ele caminhou rumo à porta do salão; entrou e viu no ponto elevado do aposento um homem de formosas faces e barbas; caminhou em sua direção e o homem, ao vê-lo, deu-lhe boas-vindas e lhe perguntou sobre o seu estado; meu irmão lhe informou ser um necessitado que vivia do que os outros pudessem dar-lhe. Ouvindo tais palavras, o homem afetou grande pesar e, pondo as mãos em suas próprias roupas, rasgou-as e disse: “Quer dizer então que neste país em que eu vivo você passa fome? Não, não posso suportar isso!”. E se comprometeu a fazer tudo de bom pelo meu irmão. Depois disse: “É imperioso que você seja o meu comensal”. Meu irmão respondeu: “Meu senhor, já não suporto mais! Estou completamente faminto!”. O homem gritou: “Criado, traga o vaso e a bacia para lavarmos as mãos!”. Meu irmão não viu bacia nem nada. O homem disse: “Vamos, meu irmão, venha lavar as mãos”, e começou a gesticular como se estivesse lavando as mãos. Depois gritou: “Sirvam a mesa!”, e fez uma gesticulação; “Mas eu não via nada ser trazido”, conforme relatou o meu irmão. O homem disse ao hóspede: “Por vida minha, coma e não se acanhe!”, e fez gestos como se estivesse comendo, pondo-se a dizer ao meu irmão: “Por vida minha, não seja parcimonioso com a comida, pois faço ideia da fome que você está sentindo neste momento!”. Meu irmão começou a gesticular como se estivesse comendo algo, e o homem pôs-se a dizer-lhe: “Coma agora, por vida minha. Repare só na beleza e alvura deste pão”, mas, sem ver nada, meu irmão pensou: “Este homem gosta de brincar e divertir-se às custas dos outros”, e disse: “Meu senhor, nunca em minha vida vi alvura mais formosa, nem pão mais gostoso de mastigar”. O homem respondeu: “Foi feito por uma de minhas servas, que me custou quinhentos dinares”.

E a aurora alcançou Shahråzåd, que parou de falar. Dinårzåd disse: “Maninha, como é agradável e saborosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte ela disse:

Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:

O barbeiro disse ao grupo:

Eu disse ao califa:

O homem gritou: “Criado, sirva o cozido de trigo e carne moída [harissa] como primeiro prato, e ponha-lhe bastante gordura”. Depois disse ao meu irmão: “Por Deus, caro hóspede, você já viu cozido mais suculento do que este? Por vida minha, coma e não se acanhe”, e gritou: “Criado, sirva o pato gordo em molho de vinagrete!”.[escabeche] Continuou dizendo ao meu irmão: “Coma, pois eu sei que você está faminto e necessitado”, e meu irmão se pôs a mexer os maxilares, fingindo mastigar. O homem foi mandando servir um prato atrás do outro, sem que nada fosse trazido, e ordenava a meu irmão que comesse. Depois gritou: “Criado, sirva os galetos gordos cozidos na coalhada”, e disse ao meu irmão: “Por sua vida, meu hóspede, esses galetos foram engordados com pistache. Coma disso que você jamais provou antes”. Meu irmão respondeu: “Meu senhor, isso é mesmo muito gostoso”. O homem se pôs a levar a mão à boca de meu irmão, como se estivesse dando-lhe de comer. Enquanto ele descrevia todas aquelas variedades de alimento, meu faminto irmão faria muito gosto de poder dar uma mordida num pão de cevada. Depois o homem disse: “Sirvam as carnes fritas”, e perguntou: “Você já viu condimentos mais saborosos do que os desta comida? Coma bem e não se acanhe”. Meu irmão disse: “Já estou satisfeito, meu senhor!”. O homem gritou: “Retirem isso tudo e sirvam a sobremesa”, e disse ao meu irmão: “Coma deste doce de amêndoas, que está muitíssimo benfeito, e destes pasteizinhos de nozes. Por vida minha que a calda deste pastelzinho na minha mão está escorrendo!”. Meu irmão disse: “Que eu não me veja privado do senhor”, e o interrogou sobre a grande quantidade de almíscar que havia nos pastéis; o homem respondeu, enquanto meu irmão movimentava a boca e as mandíbulas: “É o meu costume fazer assim com os pastéis”. O homem enfim disse: “Chega disso; agora, comamos geleia de amêndoas”, e continuou: “Coma e não se acanhe!”. Meu irmão disse: “Já estou satisfeito, meu senhor! Não consigo comer mais nada”. O homem perguntou: “Então, meu hóspede, gostaria de beber e se descontrair? Espero que não esteja ainda com fome”. Meu irmão pensou: “Mas que tormento!”, e continuou pensando: “Vou fazer com ele uma coisa que o fará arrepender-se de semelhantes atitudes”. O homem gritou: “Sirvam bebida”, e passou uma taça ao meu irmão dizendo: “Dê um trago nessa taça; se gostar, avise”, e meu irmão respondeu: “O aroma é bom, mas eu estou habituado a outro tipo de bebida”. O homem gritou: “Tragam-lhe uma bebida alcoólica diferente”, e brindou: “Felicidades e saúde!”. Meu irmão gesticulou como quem está bebendo, afetou embriaguez e disse: “Meu senhor, eu não deveria ter bebido”. E, mostrando-se inconveniente, fingindo-se de bêbado, meu irmão pegou o homem de surpresa: ergueu o braço até que aparecesse o branco da axila, e lhe aplicou na nuca uma tapona tão violenta que ecoou por todo o aposento, fazendo-a seguir-se de outra tapona. O homem perguntou: “Mas o que é isso, seu canalha?”. Meu irmão respondeu: “Este seu escravo que o senhor introduziu em sua casa, e a quem deu comida e bebida, embriagou-se e está farreando. Antes de qualquer outro, é você que tem a obrigação de aguentar-lhe a ignorância e perdoar-lhe o delito”. Meu irmão me contou: “Ao ouvir minhas palavras, o homem deu uma sonora gargalhada e disse: ‘Faz muito tempo, fulano, que eu me divirto assim às custas das pessoas, mas nunca vi ninguém que tivesse inteligência e jogasse o jogo comigo senão você. Por isso, está agora perdoado’”.