Comilança em Norte — Louis-Ferdinand Céline (1960) (Aka - De Castelo em Castelo)

 O Brenner só admitia famílias muito, muito boas, antigos príncipes reinantes ou magnatas do Ruhr… desses grandes capitães de fundições com cem… duzentos mil operários… e na ocasião de que estou falando, em julho de 44, ainda abastecidos muito bem e pontualmente… eles e a criadagem… manteiga, ovos, caviar, geléia inglesa, salmão, conhaque, champanhe… lançados de paraquedas sobre Viena na Áustria… diretamente de Rostov, Túnis, Epernay, Londres… as guerras que explodem em sete frentes e em todos os mares nada podem contra o caviar… a superarrasa-tudo, bomba Z, lança-pedras ou mata-moscas, respeitará sempre as delikatessen das mesas da alta-roda… não há de ser amanhã que se vai ver Krukruzof comendo carne de lata! Nixon passando a pão e laranja, Millamac, à cenoura crua… as mesas da alta são "Razões de Estado"… O Brenner tinha tudo para isso!… assassinos em todos os andares, vestidos de ajudantes de cozinha… levando compota de cereja pra lá e pra cá…

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Garanto que, em Baden-Baden, no Hotel Brenner, havia muito o que ver e contar!… lá não estava só o pessoal dos Koncern de Ruhr e dos bancos da Europa Central-Balcãs, mas também os generais feridos, poucos, de todas as frentes, principalmente à mesa do ministro Schulze, representante da Chancelaria!… toda essa gente não passava mal, juro… comidas finas e cada complô, trama e horário!… vão pensar que estou inventando… mas, absolutamente… sou cronista fiel!… era preciso estar lá pra ver claro… as circunstâncias! não é qualquer pessoa… o fim das refeições abarrotadas de assados, pesados segredos e vinho de Borgonha… cardápios irresistíveis!… requinte de ponta a ponta, das entradas aos morangos com creme… pêssego melba… calda?… mais?… menos?… um nada?… e o bando de garçons muito atentos, à escuta e anotando tudo, entre hesitações, e suspiros… as finas flores das redes de espionagem, gigolôs, fifis, geheimdienst, Wilhelmstrasse, tutti frutti, todas as tendências!… tão hábeis e prontos a servir quatro "micros" de uma só vez quanto a apresentar faisões, lagosta com dois molhos e aipo, com uma só mão! ao mesmo tempo! a doze convivas… agilidade, silêncio, precisão! muitos já tinham servido Pétain e, no Ritz, em Paris, Goering… e não só o Hermann! todos os altos dignitários nazistas mais a baronesa de Rothschild… para os perdidos, miseráveis, fracassados, baboseiras racistas… a elite é a elite, de qualquer forma, em qualquer lugar!… para os outros, os meetings, e a merda! levantes, gritaria, punhos levantados, punhos abaixados, polegares pra baixo, de joelho, deitados, que vá à merda a corja toda! um garçom da Casa Branca, do Kremlin, de Vichy ou do Brenner tem o mesmo jeito inconfundível de oferecer a salada… o patife típico, coma ele repolho roxo ou couve-flor, bortch ou cozido, soltará sempre o mesmo peido de dar pena… seja ele regado a beaujolais ou vodca! mas outras digestões bem diferentes vão se fazer em Windsor, no Kremlin, no palácio do Elysée!… o que é que quer o jornal de esquerda L'Humanité, a intelligentsia dos condenados?... a sua felicidade, o seu fervor? dar os mesmos peidos de Kruschev ou Picasso!... ser maldito como eles!… não é tão fácil!… estilo, tradições, carpetes espessos, pratos servidos sem ruído!… hein, seus matutos!… "O senhor deseja, por favor, este consomê com pontas de aspargos?… mais cremoso!…"

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O nosso, o legationsfat Schulze não queria outra coisa… informações e uma vida de príncipe! Cuidei dele e da família… ele ocupava os gabinetes, e as governantas e crianças, toda a "ala ensolarada" do hotel… não podia querer nada melhor!… ah, podia… quanto à cozinha!… não estava nada satisfeito! não acertavam as bouillabaisses!… e não era por falta de cuidado… mas faziam de propósito! era evidente! mandar aqueles caldos ralos para Schulze, conhecedor requintado, cônsul em Marselha durante dez anos! era sabotagem!

"Doutor! Doutor! prove só isso!… parece sopa do Exército da Salvação!"

Ele, que durante dez anos tinha sido cônsul em Marselha, mandava chamar o chefe-cozinheiro… que era também de Marselha! e lá vinham as explicações! Com sotaque e tudo! Todo o exército alemão podia estar em derrocada, podiam dizer que estava perdendo a Europa, deixava para trás vinte exércitos, mas a bouillabaisse de Schultz sempre foi a grande preocupação do Hotel Brenner… o abastecimento por "entrega rápida"! rascasso, alho, açafrão, peixes pequenos da Côte des Maures, vinte espécies diferentes, lançados na cozinha à hora certa, frescos, em aquários,  por avião… para que não se dissesse, mais tarde que, por causa da  guerra ou não, houvera negligência no Hotel Brenner… mas  aquela bouillabaisse despertava mais do que comentários… suspeitas!

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A confeitaria do Cassino estava sempre atopetada de viúvas de guerra alemãs… em pleno tratamento para choques emocionais… e tome bolos ao rum!… suspiros e brioches aos punhados!… tortinhas de murtilas e bandejas de bombas… dava gosto vê-las!… tenho de admitir que aproveitávamos um pouco… como passamos mal mais tarde…! já contei! os doces sintéticos de Sigmaringen, mais pareciam reboco do que farinha… não me queiram mal, se conto tudo em desordem… o fim antes do começo!… tanto faz! o que vale é a verdade!… vai dar para entender! eu entendo direitinho!… é só ter um pouco de boa vontade!… é como quando se olha um quadro moderno, dá mais trabalho!… não é tão exorbitante imaginar viúvas de guerra em pleno tratamento de superalimentação de tortas, biscoitinhos, folheados de morango… e bules de chocolate bem cremoso… não é difícil! todas de bocas cheias, escorrendo… e que dificuldade para saírem… para passarem pelas portas giratórias!… era preciso que os garçons empurrassem… todas aquelas senhoras meio adormecidas… que fossem cair cá e lá… no parque… num banco ou em outro… arrotando… pensativas… giboiando ainda por muitas horas…


Esse romance se encontra também dividido em uma trilogia: