Jantar em O Decamerão — Giovanni Boccaccio (1353)

 A mulher, que soubera que Guardastagno deveria estar presente ao jantar, naquela noite, animou-se de enorme desejo de o ver; notando, porém, que ele não chegava, muito se admirou; e disse, ao marido:

— Que foi que aconteceu, senhor, para impedir que Guardastagno viesse?

A isto o marido respondeu:

— Mulher: recebi notícia, da parte dele, dizendo que ele não poderá aparecer por aqui antes de amanhã.

Diante disto, a mulher ficou um pouco perturbada.

Rossilhão, depois de apear, já no seu castelo, mandara chamar o cozinheiro, para lhe dizer:

— Tome aquele coração de javali; faça, com ele, um bom prato; a melhor e mais agradável iguaria que você souber fazer, para que se coma; e, quando eu estiver à mesa, mande-a dentro de uma tigela de prata.

O cozinheiro tomou aquele coração em suas mãos; pondo na tarefa toda a arte e o máximo de solicitude, picou-o; acrescentou-lhe inúmeras especiarias; e acabou fazendo um petisco extremamente saboroso. Quando chegou a hora, o sr. Guilherme de Rossilhão, em companhia de sua esposa, sentou-se à mesa. O jantar foi servido; mas ele pouco comeu, porque, em consequência do mal que havia praticado, se viu impedido pelo pensamento do que fizera. Em certa altura, o cozinheiro mandou para a mesa aquele petisco peculiar; Rossilhão mandou que o petisco fosse colocado diante da mulher; mostrou-se destituído de fome; mas louvou extraordinariamente aquele prato. A mulher, que não estava sem vontade de comer, começou a alimentar-se; aquilo lhe pareceu muito bom; e, por isto, comeu tudo. Quando Rossilhão viu que a mulher já havia devorado o petisco todo, perguntou:

— Mulher: que é que lhe pareceu essa iguaria?

A esposa respondeu:

— Senhor: na verdade, ela me agradou muito.

— Se Deus me ajuda — esclareceu o cavaleiro —, devo acreditar no que você diz; e não me admira que o diga, nem que lhe agrade, morto, aquilo que, vivo, lhe agradou mais do que qualquer outra coisa.

A mulher, ao ouvir isto, ficou pensativa um instante; depois, disse:

— Como? Que foi que você me fez comer?

O cavaleiro respondeu:

— O que você comeu foi, na verdade, o coração do sr. Guilherme Guardastagno, o mesmo que, você, como esposa infiel, tanto amava. E fique sabendo, com absoluta certeza, que se trata do coração dele mesmo, porque fui eu, pessoalmente, com estas mãos, quem lhe arrancou do peito, pouco antes de voltar ao castelo.