Comilança em O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1958)

 Pondo de parte, porém, as boas maneiras, o aspecto de um daqueles monumentais pastelões era bem digno de provocar frémitos de admiração. O ouro brunido do invólucro, a fragrância do açúcar e da canela que dele emanava, constituíam apenas o prelúdio da sensação deliciosa que o interior suscitava quando a faca penetrava na crosta: primeiro vinha uma vaporada carregada de aromas, depois, eram as miudezas, os ovos duros, os bocadinhos de galinha, de presunto, de trufas que se avistavam na massa untuosa, muito quente, do macarronete cortado, a que o caldo de carne dava uma preciosa cor de camurça.

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O Príncipe e o organista repousaram na sombra que os sobreiros projetavam à volta: aí beberam o vinho morno dos cantis de madeira, acompanharam um frango assado, que saíra da bolsa de Fabrício, com os belos muffoleti, polvilhados de farinha crua, que don Ciccio havia trazido; saborearam a uva insolia, tão má no aspecto como boa ao sabor; com grandes bocados de pão saciavam a fome dos perdigueiros que lá estavam em frente deles, impassíveis como meirinhos ocupados na cobrança dos seus créditos.

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Abaixo dos candelabros, abaixo das armações de cinco andares que elevavam para o teto as pirâmides dos “doces de enfeitar” que nunca se consumiam, estendia-se a monótona opulência das tables à thé dos grandes bailes: cor de coral os camarões cozidos em vida, viscosos e cor de cera os chaud-froids de vitela, cor de aço os barbos imersos em molhos espessos, os perus que o calor do forno dourara, os pastéis de foie gras, rosados sob couraças de gelatina, as desossadas narcejas reclinadas sobre túmulos de pão torrado cor de âmbar e enfeitadas com as próprias vísceras trituradas, galantinas cor de aurora, dezenas de outras cruéis e coloridas delícias. Nas extremidades da mesa, duas monumentais terrinas de prata continham o consommé, âmbar queimado, límpido. Os cozinheiros nas vastas cozinhas muito deviam ter suado até à noite anterior para preparar esta ceia.

— Santo Deus, tanta coisa! Dona Margarida sabe o que faz. Mas são precisos outros estômagos, que não o meu, para tudo isto.

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Desprezando a mesa das bebidas, que estava à direita, rebrilhante de cristais e prataria, dirigiu-se para a esquerda para a dos doces. Aí imensos babá cor de canela como o pelo dos cavalos, Monís Blancs nevados de nata, beignets Dauphin que as amêndoas mosqueavam de branco e o pistácio de verde, colinas de profiteroles de chocolate, morenas e gordas como o húmus da planície de Catânia, da qual, de facto, após mil metamorfoses provinham, parfaits rosados, parfaits cor de champanhe, parfaits castanhos que se desfaziam, estalando, quando a colher os dividia, harpejos em maior das ginjas cristalizadas, timbres acidulados dos ananases amarelados e, por fim, “triunfos de gula”, com o verde opaco dos seus pistácios esmagados, os impúdicos “gâteaux dês Vierges”. Foi destes que se serviu D. Fabrício e, com eles no prato, parecia uma caricatura profana de Santa Ágata exibindo os próprios seios cortados. “Como diabo o Santo Ofício, quando o podia, não pensou em proibir estes doces? Os “triunfos da gula” (a gula, pecado mortal! ), as mamas de Santa Ágata vendidas pelos conventos, devoradas por boémios! Bah!”

Cena do filme dirigido por Luchino Visconti (1963)