Cardápio em Paris é uma Festa — Ernest Hemingway (1960)

 Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte.

Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.

***

Foi uma rápida marcha até o Lipp e cada lugar que meu estômago notava, com a mesma rapidez com que meus olhos ou meu nariz, acrescentava redobrado prazer a meus passos. Havia poucas pessoas na brasserie e, quando me sentei no banco junto à parede, com o espelho atrás de mim e uma mesa em frente e o garçom perguntou se queria cerveja, pedi logo um distingué a grande caneca de um litro, acompanhado de salada de batata.

A cerveja estava geladíssima e maravilhosa. As pommes à l'huile estavam frescas, temperadas, com molho divino e azeite delicioso. Pulverizei pimenta do reino sobre as batatas e molhei o pão no azeite. Depois do primeiro grande gole de cerveja, bebi e comi muito lentamente. Quando acabei de comer as pommes à l'huile pedi outro prato ao garçom e cervelas. Eram salsichas parecidas com uma grossa e larga frankfurter, cortadas em duas e cobertas com molho de mostarda especial.

Enxuguei com o pão todo o azeite e todo o molho e bebi a cerveja lentamente até ela começar a aquecer-se, depois acabei-a e pedi um demi, que vi retirarem do barril. Parecia mais gelada que o distingué e bebi metade dela.

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Pouco depois do boato me ter chegado aos ouvidos, Walsh me convidou um dia para almoçar com ele num restaurante que era o melhor e o mais caro das vizinhanças do Boulevard St-Michel; logo após as ostras, que, eram também das mais caras - marennes alongadas, de cor ligeiramente acobreada, em lugar das comuns e côncavas portugaises - e de uma garrafa de Pouilly Fuisé, Walsh começou a conduzir a conversa, delicadamente, para o tal prémio. Tive logo a impressão de que me queria levar no bico, como fizera com as duas bobocas que conhecera no navio - admitindo-se que elas fossem de fato bobocas e que ele as tivesse levado na conversa. Perguntou-me se eu queria um pouco mais daquelas ostras alongadas, pois era assim que se referia a elas, e eu disse que sim, pois estavam ótimas. Notei que não se esforçava por me apresentar aquele ar de marcado para morrer, o que já era um alívio. Eu sabia - e ele não ignorava isso - que Walsh estava carunchado no pulmão, e que a coisa não era de brincadeira, era caruncho no duro do tipo que naquela época botava um sujeito na cova. Por isso, também, não fez força para tossir, coisa que muito me agradou porque estávamos na mesa . Perguntei-me se ele comia as tais ostras alongadas pelo mesmo motivo que as prostitutas de Kansas City, quando estavam marcadas para morrer ou para o que desse e viesse, sempre engoliam esperma como o melhor remédio para a tuberculose, mas achei que não seria delicado investigar esse ponto. Ataquei minha segunda duzia de ostras tirando-as uma a uma de seu leito de gelo moído sobre bandeja de prata e notando que seus contornos, de um castanho incrivelmente delicado, se contraíam quando eu espremia limão sobre elas e as destacava de sua casca, para comê-las também delicadamente.

- Ezra é um grande, um genial poeta - disse Walsh, olhando-me com seus olhos escuros de poeta.

- Sem dúvida - concordei. - E, além disso, um ótimo sujeito.

- Um caráter nobre - insistiu Walsh - Verdadeiramente nobre.

Comemos e bebemos em silêncio durante alguns momentos, em homenagem à nobreza de Ezra. Senti que ele não estivesse conosco, pois as marennes também estavam fora de seu gabarito financeiro.

 - Joyce é excelente. - disse Walsh. - Grande escritor, verdadeiramente grande.

 - Verdadeiramente! - repeti. - E um bom amigo.

 Eu era de fato amigo de Joyce, tendo-me aproximado dele naquela fase magnífica por que passou, depois de terminado o Ulysses, e antes de iniciar o livro a que durante muito tempo se referiu apenas como Trabalho em Execução. A menção de seu nome me trouxe à lembrança uma série de coisas a seu respeito.

- Gostaria que ele estivesse melhor da vista - continuou Walsh.

- Eu também - disse eu.

- É a tragédia do nosso tempo - afirmou Walsh.

- Não há quem não tenha qualquer coisa fora dos eixos - respondi, querendo animar um pouco o almoço.

- Você não me parece ter coisa alguma. - Jogou sobre mim todo o seu charme, mas fez logo a cara de quem está marcado para morrer.

- Você quer dizer que eu não estou marcado para morrer? - perguntei, não tendo podido conter minha maldade.

- Exatamente! Você está marcado para Viver! - Senti que ele disse Viver com V maiúsculo.

- Tudo chegará a seu tempo - disse eu.

Walsh quis comer depois uma carne mal passada e encomendei dois tournedós com sauce Béarnaise, certo de que a manteiga lhe faria bem.

- Que tal bebermos um bom vinho tinto? – perguntou-me. Fiz sinal ao sommelier e encomendei um Châteauneuf du Pape. Depois do almoço andaria um pouco para neutralizar-lhe o efeito. Walsh poderia dormir ou fazer o que melhor lhe parecesse, pensei eu, porque só cuidarei de mim e de mais ninguém.

As negaças terminaram quando chegávamos ao fim dos tournedós e das batatas fritas, tendo bebido já uns dois terços do Châteauneuf du Pape, que, a propósito, não é um vinho adequado para almoço.

- Não adianta esconder o jogo - disse Walsh. - Você já deve ter percebido que o prémio será seu, não é?

- Meu? - respondi. - Por quê meu?

- Porque sim. - Desandou a falar sobre meus trabalhos, mas desliguei completamente.