Escaldado de Baiacu em 'Viva o povo brasileiro' romance épico de João Ubaldo Ribeiro (1984)

 Mas que lindo escaldado de baiacu borbulha no caçarolão de barro, minha gente! Filés fumegantes alvos como angélicas, já quase no ponto, cheirando que é uma novidade e por volta uns quiabos de ponta quebrada escolhidos a dedo, coisas de mais de palmo largo, baba forte e decisão no prato; maxixes muitos, alguns jilós, umas bananas-da-terra, duas ou três batatonas doces, diversas fatias de abóbora, tomates em vários estados de madureza, batatas-do-reino, um aipim-rosa, rodela de inhame, repolho, couve e fruta-pão. Tudo de bom, enfim, os melhores triviais de um grande escaldado, temperado no caldinho de limão, na pimenta dedo-de-moça, dentinho de alho, salzinho, cebolinha roxa e coentro como se fora capim, piladinhos juntos.

Assim se entende por que Florisvaldo Balão, macho da feiticeira Rita Popó, que vai chegando para almoçar, estaca diante do belo panelão que gorgoleja sobre as brasas e sorve com volúpia o ar salpimentado umedecido pelo vapor do baiacu, reconhecidamente o melhor peixe do mar, iguaria para homenagens e confraternizações, cujo sabor e cuja finura são reputados sem rival. Avaliando o caldo em que alguns quiabos já começam a abrir-se, antecipa o pirão de copioba de primeira, com arte no escaldo e na mistura, fecha os olhos deleitado. Difícil de entender será, talvez, a razão por que, depois de tanto encantar-se, Florisvaldo muda de expressão e, olhando com desconfiança para a panela, benze-se e murmura uma oração forte. É que, sobre ser o melhor peixe do mar, o baiacu é também venenoso, costumando matar com rapidez quem o come sem saber tratá-lo. Felizmente, existe quem saiba tratá-lo com competência. Basta, por exemplo, remover a pele. Não, não basta remover a pele, a pele não tem veneno, há até gente que come a pele. O problema é o umbigo. O baiacu tem aquele umbiguinho encaroçado e é ali que está o veneno, sendo portanto suficiente, para que não haja perigo, fazer uma cunha na carne polpuda do peixe, bem no lugar do umbigo. É bem verdade que na cabeça é que pode estar a sede da peçonha, de forma que o mais seguro talvez seja jogar as cabeças fora. Claro que é bem possível assistir razão aos que afirmam que o veneno está em todo o peixe, mas o cozimento longo em panela destapada faz com que ele vire fumaça e vá embora. Não, não, a questão é outra, é a lua, pois não passa de rematada loucura comer baiacu na lua cheia, ou senão quarto minguante, quem sabe quarto crescente, talvez na lua nova. Que lua, que nada, o segredo é o mês em que se come o baiacu, não se podendo comê-lo nos meses que não têm a letra rê no nome, ou nos que têm a letra rê no nome, ou ainda na semana santa, ou na Quaresma inteira, ou quinze dias antes e quinze dias depois da véspera de Natal.

Comer escaldado de baiacu é por conseguinte uma experiência importante, havendo quem o coma até com regularidade durante anos e anos com apenas uma ou duas mortes na família, não se conhecendo caso de quem tenha morrido de baiacu sem estar acostumado a comer baiacu, porque só come baiacu quem está acostumado, pois quem não está acostumado pode morrer se comer. Florisvaldo Balão e Rita Popó são acostumados a comer baiacu, todos os que partilharão do almoço são acostumados a comer baiacu e foi por isso que ele se benzeu e fez sua prece, para não morrer ainda desta vez. Depois passou para a sala, onde já estavam alguns convidados, dos dez ou doze que viriam juntar-se a ele e a Rita, como acontecia quase todos os domingos. E entrou sorridente, porque sabia qual devia ser o assunto das conversas, que era sempre o mesmo quando se servia baiacu, ou seja, histórias de mortes de gente que comeu baiacu. Como justamente a que Edésia Tata estava finalizando, a respeito dos cinco amidos te tomeram baiatu, foram dormir e nunta mais atordaram, a não ser um, te atordou mas fitou maluto da tabeça.

— Esse foi o povo que morreu na Ponta do Trilho? — perguntou Florisvaldo.

— Não, esse da Ponta do Trilho foi outro caso — explicou Ramiro Grande, famoso por uma vez ter deixado de comer baiacu e voltado, quando já parecia livre da tentação. — No caso da Ponta do Trilho, a filha mais velha da casa não comia baiacu, mas comeu a galinha que comeu a tripa do baiacu e então morreu quem comeu peixe, morreu quem comeu galinha, morreu até quem tomou canja dessa dita galinha e os cachorros que comeram os restos.

— O baiacu de hoje quem tratou?

— Foi Désia.

— Foi eu não, só tratei três, o resto foi Sá Rita.

— Baiacu de duas mãos?

— Que é que tem? Mesmo sistema.

— Baiacu de duas mãos hoje, hem? Sempre ouvi dizer que baiacu de duas mãos não é boa coisa.

E ainda estavam discutindo sobre o baiacu, quando Rita Popó, tão gorda que achava mais cômodo passar de lado pela porta apesar da peitarrama, voltou de um quartinho fora de casa que chamava de camarinha, parou na cozinha, experimentou a textura do peixe com a ponta da colher de pau, despejou um pouco mais de água na panela, abanou o fogo e entrou na sala. Deu um sorriso pouco amável para todos, aceitou com certo enfado as saudações respeitosas que lhe fizeram, alegou estar cansada, vinha tendo uma trabalheira muito grande. Florisvaldo chamou-a a um canto para uma conversa particular.