Lombo de porco com 'Batatas bravas' trecho do conto de Antonio Carlos Viana (2015)

Um prato que não é pra qualquer um

Antonio Carlos Viana
_______________________________________

Ao sentarem-se à mesa, dona Magdala fez as orações de costume. O marido era também muito religioso, rezavam sempre juntos, num canto da sala, todas as manhãs, diante da imagem de Nossa Senhora da Luz.

Todos já sentados diante de seus pratos, o peru enfeitado com ameixas e cerejas, dona Magdala quis tocar no assunto que tanto a maltratava desde o Jornal Nacional. Quando ia perguntando se alguém tinha visto Patrícia, não conseguia chegar ao “Poeta”, porque um dos comensais já elogiava com a boca cheia a farofa de azeitonas negras, e ela se conformava em cortar mais uma fatia da carne do peru enorme, que lhe dera também tanto trabalho.

Foi a cunhada que perguntou pelo assado de porco com batatas bravas. Dona Magdala não gostava dela e teve vontade de lhe perguntar por que não trouxera um de casa. Aquele prato não era para qualquer um. Era preciso deixar o porco marinando durante 24 horas na cerveja preta e depois ir dourando-o lentamente, lentamente, até adquirir aquela cor que lhe rendia tantos elogios. As batatas bravas, melhor nem falar, dava até preguiça pensar no seu modo de preparo.

Dona Magdala se limitou a comer silenciosamente e não sabia se ia aguentar outra pergunta sobre seu prato ausente. Não ia. Ele estava pronto, lá no forno, e lá ficaria até que a empregada o encontrasse e o jogasse fora, já coberto de vermes.

Foi o próprio marido que falou que ela estava estranha, que tomasse um cálice do sauvignon blanc que melhorava. Ela, no entanto, não queria melhorar. Sua vontade era gritar para todo mundo ali na mesa que todos não passavam de um bando de gente insensível que sai de casa para devorar o que não deveria jamais ser devorado. Pela milésima vez, ela tentou falar da reportagem e começou logo com “Patrícia Poeta”, para ver se o nome inteiro lhe daria forças para continuar falando do leitãozinho morto, que àquela altura ela já achava que era seu filho. Alguém ainda falou “linda moça”, e dona Magdala se calou porque as vozes se cruzavam e não a deixaram completar o pensamento. A sorte que alguém derramou vinho na toalha e ela correu até a cozinha para pegar uma folha de papel-toalha com um pouco de sal para jogar na mancha, porque depois seria difícil tirá-la.

Na cozinha, amparou-se na pia para não cair, sabia que, se caísse, o jantar estaria terminado. A imagem do leitãozinho era agora a do filho, o Juninho, com duas azeitonas pretas nos buracos do nariz e duas orelhinhas tenras, boas de serem mastigadas, acompanhadas de um gole de sauvignon blanc. E ela achou que o rôti era um pedaço da coxa de Juninho, tão lindinho no caixão, todo rodeado de flores, o corpo tão morninho quando ela o segurou ainda na rua, para ver a frialdade ir se espalhando, até que ele a olhou fixamente sem mais vê-la. Dona Magdala não conseguiu segurar o choro e deu quase um berro, como o da dor diante do caixão entrando na gaveta do cemitério, naquela tarde tão feia de abril. As pessoas acorreram à cozinha e a encontraram vergada, com a mão na barriga, como se estivesse morrendo envenenada, agachada, diante do forno aberto. A pintura do rosto estava desfeita, os cabelos molhados de suor, como se ela tivesse acabado de correr uma maratona. Ela tentava falar da tristeza que é um leitãozinho morto numa balança de mercado, mas não conseguia.

O resto da noite foi de silêncio absoluto, todos na sala, um ou outro pigarro por causa do vinho que de repente se tornara seco demais, enquanto dona Magdala, deitada em sua cama, medicada por um dos convidados, tentava balbuciar as palavras que ficaram a noite toda presas em sua garganta, com a certeza de que nunca mais faria rôti de porco, com ou sem batatas bravas.

_______________________________________

Conto do livro: Jeito de Matar Lagartas
Antonio Carlos Viana
2015

__________________________________
Antonio Carlos Viana é um escritor brasileiro reconhecido por sua habilidade em contar histórias cativantes e profundas. Seu livro "Jeito de Matar Lagartas" é uma coleção de contos que exploram temas como solidão, violência e identidade. Cada conto apresenta uma narrativa única e envolvente, ambientada tanto em cidades pequenas do interior do Nordeste brasileiro como em grandes centros urbanos. A obra é considerada uma das mais importantes da literatura brasileira contemporânea e é frequentemente estudada em cursos de literatura e português.