Macarrão obrigatório no romance 'Pilatos' de Carlos Heitor Cony (2011)

Decretado o macarrão obrigatório
Carlos Heitor Cony
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Por espantosa coincidência, quando Antônio Gomes Sobrinho acercou-se da mesa para tomar o café da manhã, notou que a mulher colocara à cabeceira, onde ele habitualmente se sentava, uma vasta terrina de macarrão.

— O que é isto? — bradou AGS.

A mulher caiu num pranto convulso e confuso. Explicou-lhe que havia sonhado estar o seu marido tísico, por isso decidira alimentá-lo melhor e mais adequadamente. Em vez do habitual café com leite, do pão com manteiga, ela providenciara um prato de matinal sustância.

— Pois, de hoje em diante, ninguém come macarrão nesta casa! — proclamou Antônio Gomes Sobrinho.

Afastando o prato, AGS abriu o jornal que lia todas as manhãs e ficou pasmo, mais pasmo do que ofendido, ao ver a manchete da primeira página: DECRETADO O USO DO MACARRÃO OBRIGATÓRIO. Ficou sabendo que as autoridades haviam determinado que o povo, o clero, as associações esportivas e de assistência aos flagelados da seca, todos enfim deveriam, a partir daquela data, comer obrigatoriamente macarrão em duas modalidades alternativas: ao sugo ou ao forno. Nos parágrafos subsequentes ficavam estabelecidas as diversas usanças e privanças para o uso e gozo do macarrão.

Foi o bastante para que Antônio Gomes Sobrinho requisitasse o prato que antes recusara e começasse a devorá-lo, enquanto meditava sobre as excelências da nova medida governamental, que possibilitaria aos funcionários e demais cidadãos do Estado ou da Iniciativa Privada comparecerem devidamente alimentados ao serviço.

Quando chegava ao fim, já empanturrado de macarrão, Antônio Gomes Sobrinho sentiu uma dor naquela justa parte que amanhecera doendo.

Fez esforço para continuar comendo, até que conseguiu raspar o prato, para gáudio de sua mulher, que promoveu-lhe uma ovação, na qual tomaram parte os nove filhos e mais um agregado que entrara na sala na justa hora para entregar um telegrama a Antônio Gomes Sobrinho. O qual, em abrindo o telegrama, tomou conhecimento de que fora demitido a bem do serviço público, pelo fato, também público, de ser homossexual.

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Pilatos
2011
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"Pilatos" é um romance do escritor brasileiro Carlos Heitor Cony, publicado em 1974. O livro é uma releitura ficcional da história bíblica de Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia que condenou Jesus Cristo à crucificação. Em vez de retratar Pilatos como um vilão ou um herói, Cony o apresenta como um homem complexo e contraditório, cujas decisões são influenciadas tanto pelo poder político quanto pelas pressões emocionais e morais.