Sarapatel em 'Um estranho em Goa' romance de José Eduardo Agualusa (2000)

Capaz de devolver a lucidez aos ébrios mais tenazes

____________________________________________________________

Ontem ao regressar ao Grande Hotel do Oriente encontrei um sujeito em pé, encostado à parede, absolutamente imóvel. Ao longe, recortado contra a luz amarela da fachada, parecia uma sombra sem corpo. Um homem invisível deveria projetar silhueta semelhante. O chapéu cobria-lhe os olhos. Ao aproximar-me vi que era Elias, o Segredo, com o seu luto compacto. Só se moveu quando cheguei junto dele. Tirou um envelope do bolso e entregou-mo. Era um convite de Plácido Domingo: "Venha amanhã almoçar comigo e traga as fotografias. Lembrei-me de alguns episódios que talvez sejam do seu interesse. Venha antes que eu me esqueça." Plácido Domingo gosta de cozinhar. Serviu-me primeiro um caloroso muzonguê, caldo de peixe cuja fama de devolver a lucidez aos ébrios mais tenazes, quando não de regenerar defuntos, o tornou muito popular na culinária luandense. Queixou-se de não dispor em Goa do terrível jindungo cahombo, malagueta perfumada, muito agressiva, principal responsável pelo abençoado ardor do muzonguê. A seguir deu-me a provar o famoso sarapatel, prato que se acredita descender em linha direta do sarrabulho lusitano. Pode ser que sim. No sarapatel a carne de porco arde ao lume denso do molho de masala – um urdume de ferozes especiarias, jindungo, cravo-da-índia, pimenta, cominho, canela, tudo isto, e mais alguns mistérios, moído em vinagre –, suavizado, apenas quanto baste, pela doçura acre da polpa de tamarindo. É um prato a um tempo infernal e paradisíaco. Comi, sem poupar o vinho, um amável mas vigoroso Barca Velha, de 1982, com tal apetite que no fim, exausto, num estado de inefável felicidade, me achava capaz de perdoar qualquer ofensa, passada ou futura. O velho aproveitou a ocasião: — Naquela tarde, na Basílica de Bom Jesus, hipnotizei-o...

________________________________

José Eduardo Agualusa
Um Estranho em Goa
2000

_______________________
José Eduardo Agualusa é um escritor angolano, nascido em 1960, e um dos mais renomados escritores africanos da atualidade. O livro "Um Estranho em Goa", narra a história de um escritor angolano que vai para Goa, uma antiga colônia portuguesa na Índia, para participar de um festival literário. Lá, ele se depara com uma série de eventos misteriosos e encontros com personagens estranhos, que o fazem questionar a realidade e a verdadeira natureza da ficção. O livro é uma mistura de realismo e fantasia, que explora questões de identidade, colonialismo, literatura e existência. "Um Estranho em Goa" é considerado uma das obras mais importantes de Agualusa e foi premiado com o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores em 2000.