Capaz de devolver a lucidez aos ébrios mais tenazes
Ontem ao regressar ao Grande Hotel do Oriente encontrei um sujeito em pé, encostado à parede, absolutamente imóvel. Ao longe, recortado contra a luz amarela da fachada, parecia uma sombra sem corpo. Um homem invisível deveria projetar silhueta semelhante. O chapéu cobria-lhe os olhos. Ao aproximar-me vi que era Elias, o Segredo, com o seu luto compacto. Só se moveu quando cheguei junto dele. Tirou um envelope do bolso e entregou-mo. Era um convite de Plácido Domingo: "Venha amanhã almoçar comigo e traga as fotografias. Lembrei-me de alguns episódios que talvez sejam do seu interesse. Venha antes que eu me esqueça." Plácido Domingo gosta de cozinhar. Serviu-me primeiro um caloroso muzonguê, caldo de peixe cuja fama de devolver a lucidez aos ébrios mais tenazes, quando não de regenerar defuntos, o tornou muito popular na culinária luandense. Queixou-se de não dispor em Goa do terrível jindungo cahombo, malagueta perfumada, muito agressiva, principal responsável pelo abençoado ardor do muzonguê. A seguir deu-me a provar o famoso sarapatel, prato que se acredita descender em linha direta do sarrabulho lusitano. Pode ser que sim. No sarapatel a carne de porco arde ao lume denso do molho de masala – um urdume de ferozes especiarias, jindungo, cravo-da-índia, pimenta, cominho, canela, tudo isto, e mais alguns mistérios, moído em vinagre –, suavizado, apenas quanto baste, pela doçura acre da polpa de tamarindo. É um prato a um tempo infernal e paradisíaco. Comi, sem poupar o vinho, um amável mas vigoroso Barca Velha, de 1982, com tal apetite que no fim, exausto, num estado de inefável felicidade, me achava capaz de perdoar qualquer ofensa, passada ou futura. O velho aproveitou a ocasião: — Naquela tarde, na Basílica de Bom Jesus, hipnotizei-o...
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