Refeição em 'O Barão nas Árvores' de Italo Calvino

 É na mesa que se dá a luz

Italo Calvino

Por isso lá em casa vivíamos sempre como se fosse a véspera de um convite para a corte, não sei se a da imperatriz da Áustria ou a do rei Luís, ou talvez a dos montanheses de Turim. Servia-se um peru e papai a controlar-nos para ver se conseguíamos trinchá-lo e despolpá-lo conforme todas as regras reais, e o abade quase não o saboreava para não ser apanhado em flagrante, ele que devia apoiar o patriarca nos seus vitupérios. Do cavaleiro advogado Carrega havíamos descoberto o fundo falso: fazia desaparecer pernis inteiros sob a fralda da chimarra turca, para depois comê-los com as mãos como gostava, escondido na vinha; e seríamos capazes de jurar (embora nunca o tivéssemos apanhado em ação, tão rápidos eram seus movimentos) que já vinha para a mesa com um bolso cheio de ossos limpos, para deixar no prato no lugar dos quartos de peru amoitados inteirinhos. Mamãe generala não contava, pois assumia bruscos gestos militares também ao servir-se à mesa — So! Noch ein wenig! Gut! —, e ninguém contestava; mas em relação a nós se preocupava, se não com a etiqueta, pelo menos com a disciplina, e dava mão forte ao barão com suas ordens de praça de armas — Sitz’ ruhig! E limpa o focinho! A única que ficava à vontade era Batista, a freira da casa, que limpava galetos com uma dedicação minuciosa, fibra por fibra, com umas faquinhas pontiagudas que só ela possuía, espécie de bisturis de cirurgião. O barão, que deveria apresentá-la como um exemplo para nós, não se atrevia a encará-la, pois, com aqueles olhos arregalados sob as asas da touca engomada, os dentes cerrados naquela amarelada focinheira de rato, provocava medo até nele. Assim, dava para entender por que a mesa era o lugar em que vinham à luz todos os antagonismos, as incompatibilidades entre nós e também todas as loucuras e hipocrisias; e por que justamente à mesa se determinasse a rebelião de Cosme. Por isso entro em detalhes no relato, pois de mesas postas não ouviremos mais falar na vida de meu irmão, isso é certo.

Il barone rampante (1990)

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"Il barone rampante" é um romance do escritor italiano Italo Calvino, publicado originalmente em 1957. A história é contada a partir da perspectiva de Cosimo, um jovem nobre italiano do século XVIII que decide subir em uma árvore e nunca mais descer. Cosimo passa o resto de sua vida vivendo entre as copas das árvores, explorando o mundo natural e fazendo amizade com animais.