Italo Calvino e a cozinha monacal mexicana em 'Sob o Sol-jaguar'

Para satisfazer os caprichos veniais da gula

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Depois Olivia falou. Disse: “Gostaria de comer chiles en nogada’’. E com passos de sonâmbulos, como pouco seguros de tocar o chão, dirigimo-nos ao restaurante.

Como acontece nos melhores momentos da vida de um casal, eu havia reconstruído instantaneamente o percurso dos pensamentos de Olivia, sem que fosse necessário mais uma palavra: e isso porque a mesma cadeia de associações se desenrolara também na minha cabeça, embora de modo mais lento e nebuloso, tanto que sem ela não teria podido ficar consciente disso.

Nossa viagem pelo México já durava mais de uma semana. Poucos dias antes, em Tepotzotlán, num restaurante que alinhava suas mesas entre as laranjeiras de um outro claustro de convento, havíamos saboreado comidas preparadas (pelo menos assim nos tinham dito) seguindo as antigas receitas das freiras. Tínhamos comido um tamál de elote, isto é, uma delicada farinha de milho doce com carne de porco moída e pimenta muito picante, tudo cozido no vapor com uma palha de milho; depois chiles en nogada, que eram pimentas vermelho-escuras, meio enrugadas, nadando num molho de nozes cuja aspereza picante e o fundo amargo se diluíam numa consistência cremosa e adocicada.

Daquele momento em diante a ideia das freiras evocava em nós os sabores de uma cozinha elaborada e ousada, tencionando fazer vibrar as notas extremas dos sabores e associá-las em modulações, acordes e sobretudo dissonâncias que se impusessem como uma experiência sem confrontos, um ponto de não retorno, uma possessão absoluta exercida sobre a receptividade de todos os sentidos.

O amigo mexicano que nos acompanhara naquele passeio, Salustiano Velazco, ao responder a Olivia que se informava sobre as receitas da gastronomia monacal, baixava a voz como se confiasse segredos indelicados. Esse era o seu modo de falar; ou melhor, um de seus modos: as informações de que Salustiano era pródigo (sobre a história e os costumes e a natureza do país eram de uma erudição inexaurível) eram enunciadas com ênfase como proclamações de guerra ou insinuadas com malícia como se fossem carregadas de quem sabe quais mistérios subentendidos.

Olivia tinha observado que pratos como esses exigiam horas e horas de trabalho, e antes ainda uma longa série de experiências e aperfeiçoamentos. “Mas passavam os dias na cozinha, essas freiras?”, perguntara, imaginando vidas inteiras dedicadas à busca de novas misturas de ingredientes e variações nas dosagens, à atenta paciência combinatória, à transmissão de um saber minucioso e pontual.

Tenían sus criadas, tinham suas empregadas”, respondera Salustiano e nos explicara como as filhas das famílias nobres entravam para o convento levando junto suas próprias servas; e assim, para satisfazer os caprichos veniais da gula, os únicos que lhes eram concedidos, as freiras podiam contar com um enxame alegre e infatigável de executoras. E quanto a elas, só tinham que conceber e predispor e confrontar e corrigir receitas que exprimissem suas fantasias prisioneiras entre aquelas muralhas: fantasias de mulheres refinadas, inflamadas, introversas e complicadas, mulheres com necessidades do absoluto, com leituras que falavam de êxtases e transfigurações, martírios e suplícios, mulheres com exigências contrastantes no sangue, genealogias em que a descendência dos conquistadores se misturava com a das princesas índias ou das escravas, mulheres com lembranças infantis de frutas e aromas de uma vegetação suculenta e densa de fermentos, apesar de alimentada por aqueles altiplanos ensolarados.


Sob o Sol-jaguar
Italo Calvino
1986
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Italo Calvino foi um escritor italiano nascido em 1923 e falecido em 1985, conhecido por seus romances, contos e ensaios que exploram temas como a fantasia, a filosofia e a história. "Sob o Sol-jaguar" é um livro de contos de Italo Calvino, publicado postumamente em 1986. O livro é uma coleção de doze contos que exploram temas como a magia, a natureza e a condição humana. Cada conto apresenta uma história única e surpreendente, que desafia as expectativas do leitor e o transporta para um mundo imaginário e fascinante. Em um dos contos, por exemplo, um homem é convidado a participar de um jogo mortal em que deve enfrentar um jaguar em uma luta mortal. Em outro conto, um grupo de pessoas descobre uma cidade subterrânea que desafia as leis da física. Os contos de "Sob o Sol-jaguar" são escritos em uma prosa poética e envolvente, que reflete a habilidade de Italo Calvino como escritor. Eles exploram questões profundas sobre a vida e a existência humana, e apresentam uma visão única e original do mundo. Em resumo, "Sob o Sol-jaguar" é um livro fascinante e envolvente que reflete a sensibilidade e a habilidade de Italo Calvino como escritor. Ele é uma leitura recomendada para aqueles interessados em contos fantásticos e imaginativos, que exploram as complexidades da condição humana.