Refeições literárias - Crônica de Marta Medeiros

REFEIÇÕES LITERÁRIAS

Martha Medeiros

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Outro dia uma jornalista me perguntou o que os livros significavam para mim. Pensei, pensei, e respondi com um clichê surrado: são alimento. Alimento pra alma, para o espírito? quis ela saber, me forçando a ir até o fim naquela bobagem. Sim, menti. Seria complicado explicar para ela que, na verdade, eu como livros.

Livro, para mim, é carne assada. Guisadinho com milho. Omelete de presunto. Sopa de cebola. Filé de peixe à milanesa. Ovos, aipim, berinjela, espinafre. Livro me abastece de calorias, proteínas, sais minerais. Livro me engorda.

Faço parte de uma confraria composta por meia dúzia de insensíveis: não gosto de comida. O ritual de sentar à mesa ao meio-dia para almoçar e à noite para jantar é uma tortura que enfrento silenciosa. Não tenho prazer em comer, a não ser fora de casa, onde a mudança de ambiente e o bom papo com os amigos deixa tudo mais bem temperado. No aconchego do lar, prefiro beliscar. Convoco umas torradinhas, uns queijinhos, uns amendoins, e estamos conversados. Pré-histórica: só gosto de comer aquilo que posso pegar com as mãos. Dentro da geladeira, ao contrário do que possa parecer, não guardo Hemingway, Bukowsky ou Milan Kundera: estão lá as frutas, verduras, carnes e frios que o restante da família aprecia. Vivo no supermercado. Geleia, café, farinha de rosca, feijão, leite, biscoito, sucrilhos, iogurte. Eu encheria meu carrinho de literatura e isso me faria muito mais feliz.

Mas de chocolate ela gosta, você deve estar pensando, influenciado pelos milhares de ovinhos de Páscoa que sobreviveram ao último domingo. Pois também não sou vidrada. Tive aquela fase de devorar duas caixas de Bis por conta da ansiedade, mas passou. Uma cobertura quente num sorvete de menta, ok. Um bombonzinho pra acompanhar o licor, hummm. Um Chicabon, manda. Mas meu vício insaciável, você sabe com que letra começa. L de loucura, de liberdade, de lirismo, jamais de lasanha. Estou prestes a devorar o Afrodite, de Isabel Allende. Prefiro livro de receita a um rodízio.

Apesar disso, nem ouse desistir de me convidar para um linguado com uvas e amêndoas, um filé com molho de pimenta, uma panqueca de ricota ou um suflê de batata doce, vou adorar. Tudo o que não é trivial me conquista. Mas comidinha caseira, prefiro a que me vitaminiza diariamente: Saramago, Philiph Roth, Raymond Chandler, Verissimo, Pessoa, Cony, Millôr, Dorothy Parker, João Ubaldo. Isso sim é um jantar para 400 talheres.

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O Trem Bala
1999

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Martha Medeiros é uma escritora, poetisa e cronista brasileira nascida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 20 de agosto de 1961. Ela é conhecida por suas crônicas publicadas em jornais e revistas de circulação nacional, que retratam de forma sensível e humorada as relações humanas e o cotidiano. Formada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Martha Medeiros iniciou sua carreira literária na década de 1980, com a publicação de poesias em revistas e jornais. Desde então, publicou diversos livros de crônicas, poesias e romances, consolidando-se como uma das principais vozes da literatura contemporânea brasileira. Uma de suas obras mais conhecidas é "Trem-Bala" (1999), um livro de crônicas que aborda temas como amor, amizade, família e envelhecimento. As crônicas são escritas de forma leve e bem-humorada, mas com profundidade e sensibilidade, característica marcante da escrita de Martha Medeiros. O título do livro faz referência à música "Trem-Bala" de Ana Vilela, que fala sobre a passagem do tempo e a importância de aproveitar cada momento da vida. Além de escritora, Martha Medeiros é também uma renomada palestrante, participando de eventos literários e culturais em todo o país. Sua obra já foi traduzida para diversos idiomas, o que ampliou sua visibilidade e alcance internacional.