Em defesa da cozinha sertaneja
Luís da Câmara Cascudo
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A cozinha sertaneja está decadente. Menos por sua própria essência do que pelo indesculpável acanhamento em mostrar-se. O primeiro cuidado de um fazendeiro de Minas Gerais ou São Paulo é provar que come bem e o que come é gostoso. O nosso sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo coalhada com carne de sol, costelas de carneiro com pirão de leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o munguzá que o africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena.
Nada mais antipatriótico e desumano que esta modéstia criminosa. Nós devemos ter orgulho de nossa alimentação tradicional, formadora de rijos homens de outrora, vencedores da indiada, lutando com as onças a facão e morrendo de velhos.
Não sorriam destas afirmativas. O problema da alimentação é participar direto do valor racial. Os romanos diziam que o Império caíra porque o legionário deixara as iguarias seculares, o alho, o azeite, a broa de trigo e a carne meio crua. Com este repasto dominara Ásia e África. Quando, ao contato das delícias do paladar oriental, começou a comer miolos de pavão, língua de rouxinóis, carpas douradas e faisões, desaprendeu o segredo de ser invencível e recuou ante o bárbaro que chegara, uivando de ferocidade, devorando carne de cavalo e bebendo leite de jumenta.
Todos os fisiologistas atendem ao ponto de vista manducatório. Psicólogos tomam a liberdade de explicar a obstinação do picardo, a arrogância do gascão, a teimosia bretã, a calma flamenga, a leveza do parisiense, pelo seu respectivo cibo. Regime de carne dá o inglês. Regime de vegetais dá o mahatma Gandi.
Todos os países têm sua maneira peculiar de cozer, assar ou guizar carnes, peixes, moluscos e aves. Hoje, nas cidades como Paris, Londres, Berlim, Roma, Nova York, certos hotéis conservam os cardápios fiéis aos seus países de origem. No Café Inglês come-se o beef-steck. No Kornilov, o cabrito assado ao gosto do Cáucaso.
No sertão do Rio Grande do Norte a tendência é seguir o litoral no cosmopolitismo alimentar, quase sempre irracional e péssimo. Os tutanos de “corredor” de boi que, misturados com raspadura, constituíam o mistério das supremas vitalidades masculinas, já não têm apreciadores. Não vi comer farinha com açúcar, sobremesa típica, nem angu de ovos, prato de crianças em idade escolar, superior ao Toddy, ao Quaker Oats.
O sertanejo precisa convencer-se de que deve à sua forma de alimentar-se a justificação de sua resistência física. Não é a comida da praça que o reajustará ao ritmo das possanças antigas. Alexandre Magno só degenerou quando não aceitava a sólida comida da Macedônia.
O milho e o leite constituem bases alimentares de primeira ordem, e tendo a vantagem do sabor e da fácil aquisição. Defendamos a cozinha secular que nos doou músculos serenos e forças gigantescas. Podemos ir melhorando, diminuindo a intensidade rústica de certos pratos históricos, mas não aboli-los do nosso sustento. É um desserviço à nossa nacionalização de cultura escrevermos em brasileiro e comermos à inglesa.
Outrora o sertanejo assombrava-se com uma salada de alface. Polibio, meu primo, quando lhe ofereci uma, recusou, formalizado:
– Sô lá largata prá comê foia?...
Hoje já se come tudo isto. Concedo o peru ao forno, a galinha verde, a salada russa, a mayonese de peixe, o macarrão à milanesa. Vá que se comam estas coisas no Sertão como eu comi patas de rã – para saber até aonde ia o pedantismo alimentar do elegante. Mas relegar os nossos velhos, simples, deliciosos e históricos quitutes, alimentadores dos nossos avós, base de sua energia incrível, a um canto do fogão e dizê-los exilados das mesas e dos paladares, ah! isto, por todos os santos do Céu, protesto, protesto, protesto.