A satisfação da gula não tem limites - Liev Tolstói

O primeiro degrau
Liev Tolstói
______________________

Na vida cotidiana da classe baixa, vê-se com clareza que a festa, o enterro, o casamento são pretextos para a comilança. É assim que eles entendem a questão. A comilança toma o lugar do próprio motivo da reunião a tal ponto que em grego e em francês casamento e banquete têm o mesmo significado: reunião. Mas na alta sociedade, entre as pessoas refinadas, faz-se uso de grande arte para esconder isso e fingir que a comida é uma coisa secundária, nada além de uma questão de decência. E para eles é simples fazer esse tipo de representação, porque em sua maioria estão saciados, no verdadeiro sentido da palavra, ou seja, nunca estão com fome.

Eles fingem que o almoço, a comida, não são necessários, que são até mesmo um peso; mas é mentira. Tentem dar-lhes, em lugar dos esperados pratos refinados, não digo pão e água, mas mingau e talharins, e verão a tormenta que surgirá e como aparecerá a verdade, a saber: o principal interesse da reunião dessas pessoas não é aquele que expõem, mas o interesse pela comida.

Vejam o que estão vendendo as pessoas, percorram a cidade e vejam o que se vende: roupas e produtos para satisfazer a gula.

Em essência, isso é e deve ser assim, e não pode ser diferente. Não pensar em comida, conter essa paixão dentro de limites, só é possível quando o homem está submetido à necessidade de comer; mas, quando o homem para de comer, submetendo-se somente à necessidade, isto é, à necessidade de encher a barriga, então não pode ser de outra maneira. Se o homem se encantou com o prazer da comida, permitiu-se amar esse prazer e acha que é um prazer bom (como acha a imensa maioria das pessoas do nosso mundo, e mesmo as instruídas, embora finjam o contrário), então não há limites para que aumente, não há limites que esse prazer não possa ultrapassar. A satisfação da necessidade tem limites, mas a satisfação do prazer não tem. Para a satisfação da necessidade é suficiente comer pão, mingau ou arroz; para aumentar o prazer há uma infinidade de temperos e métodos.

O pão é um alimento necessário e suficiente (a prova disso são milhões de pessoas fortes, ágeis, saudáveis e que trabalham muito se alimentando somente com pão). Mas é melhor comer pão com tempero. É bom molhar pão em água com gordura de carne. Ainda melhor é pôr vegetais nessa água e ainda melhor se forem vegetais variados. É bom comer carne. Mas é melhor comer carne frita, não cozida. E melhor ainda é fritá-la um pouco na manteiga e deixá-la malpassada em certas partes. E ainda acrescentar verduras e mostarda. E acompanhar isso com vinho, de preferência tinto. Já não se sente fome, mas se pode comer mais um peixe se estiver temperado com molho e acompanhado de vinho branco. Parece que não se pode comer mais nada gorduroso ou saboroso. Mas ainda se pode comer um doce: um sorvete no verão, e no inverno pode ser uma compota, uma geleia e assim por diante. E eis um almoço, um discreto almoço. O prazer desse almoço ainda pode aumentar muito, muito mais. E aumentam-no, e esse aumento não tem limites: entradas que abrem o apetite, entremets, sobremesas, diferentes combinações de coisas gostosas, flores, enfeites e música durante o almoço.

E uma coisa surpreendente: as pessoas que todo dia se deleitam com almoços em comparação com os quais o banquete de Belsazar*, que provocou um perigo admirável, não é nada, estão inocentemente convencidas de que podem, ao mesmo tempo, levar uma vida moral.

__________________________

in: Os Últimos Dias
1891

__________________________

"Os últimos dias" é uma compilação de textos variados do autor, escritos entre 1882 até 1910, que foram reunidos por Jay Parini.

(* - O "Banquete de Belsazar" é uma história bíblica que se encontra no livro de Daniel, capítulo 5. De acordo com a narrativa, o banquete ocorreu em 539 a.C., durante o reinado do rei Belsazar da Babilônia. Durante o banquete, Belsazar utilizou os utensílios sagrados do templo de Jerusalém para beber vinho com seus convidados, desrespeitando assim a Deus. Como consequência, uma mão apareceu e escreveu uma mensagem na parede do palácio, que foi interpretada pelo profeta Daniel como um aviso de que o reino de Belsazar estava para terminar.)