Almoço depois de 20 anos
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Mariana Müller
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O cardápio reunia uma série de variações da combinação carboidrato mais proteína animal em porções individuais: filé com massa aos quatro queijos, risoto de filé, massa à bolonhesa e nhoque com molho de carne. Legumes, saladas e grãos estavam esquecidos na página das saladas que, na verdade, não chegava a ser uma página completa. O garçom disse que os pratos serviam uma só pessoa e saiu. Antônia revirava em silêncio as folhas de trás pra frente sem fixar os olhos em nenhuma até que o garçom apareceu com bloco e caneta na mão.
— Um filé com massa aos quatro queijos, por favor – disse Zé – não quer um nhoque, filha? — completou.
A barba tinha crescido, os pelos irregulares tomavam conta do pescoço, e Zé apertava os dedos o tempo todo. Será que o pai teria como pagar aquilo tudo? Não era preciso gastar o dinheiro que não tinha — um erro — para explicar sobre a irmã desconhecida, outro erro.
— Pode ser uma massa à bolonhesa, moço — disse a garota ao devolver o cardápio com capa de couro — e um guaraná.
Como está a faculdade? Anda muito cansada? É bom esse restaurante, né? Lembro que tu gostava de nhoque quando era pequena, ainda gosta? Zé soltava uma pergunta atrás da outra e recebia como resposta, em quase todas, um monossílabo. Sim. Não. É. Elogiava o filé e comentava o tempero do molho. Às vezes, sua voz saía em um tom estranho, um tanto distante do corpo.
Metade da porção de massa ainda estava no prato quando Antônia largou os talheres e se atirou no encosto cinza da cadeira:
— Não acredito que tu não vai dizer nada sobre ela, pai — soltou.
— Como assim? – Zé passou o guardanapo de pano na boca e tossiu – O que tu quer saber?
— Por que tu guardou esse segredo por quase vinte anos.
Onde ela mora, como é a mãe dela, quando vocês costumam se encontrar, ela sabe de mim, eu preciso conhecer ou não preciso. Nem umas vinte perguntas a deixariam satisfeita.
— Não sei, filha — e tomou um gole d’água — não consegui contar quando soube da gravidez, tua mãe andava tão feliz naquela época.
Antônia olhava fixo em direção ao pai, que estalava os dedos com força mais uma vez. — E aí se passaram vinte anos?
— É — disse Zé empurrando o prato sem massa, sem filé e sem molho.
A garota bebeu um gole de guaraná e postou os dois talheres lado a lado no prato quase cheio — Nem sei o que te responder, pai — disse.
Zé não parava na cadeira estofada, mexia-se desde a chegada no restaurante, cruzava e descruzava as pernas a todo instante. Com os cotovelos apoiados na mesa, as duas mãos na barba e o rosto perto de Antônia, disse:
— E se a gente almoçar com a Lara no sábado?
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Lara - Mariana Müller (2016)
(In Caleidoscópio. Luiz Antonio de Assis Brasil (Org.))