Cena em restaurante chinês - Philip Roth

A Marca Humana
Philip Roth
2000
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O restaurante chinês ficava ao norte de Blackwell, na estrada, logo depois da fábrica de papel abandonada, e os fundos davam para o rio. Era um prédio de concreto baixo e comprido, pintado de rosa, com um janelão na frente, e metade das paredes era pintada de modo a dar a impressão de uma estrutura de tijolos — tijolos rosa. Antigamente ali funcionava um boliche. Na vitrine grande, o letreiro de néon, que imitava caracteres chineses, piscava de modo aleatório, formando o nome: “Palácio da Harmonia”.

Para Les, bastou ver aquele letreiro para que morressem suas últimas e tênues esperanças. Ele não ia conseguir. Nunca ia conseguir. Ia pirar completamente.

A monotonia de repetir aquelas palavras — e, no entanto, o esforço necessário para reprimir a sensação de terror. O rio de sangue que ele precisou atravessar, passando pelo olho-puxado sorridente à porta, até sentar-se à mesa. E o horror — um horror enlouquecedor, contra o qual não havia proteção — de receber o cardápio das mãos daquele olho-puxado sorridente. Como era grotesco aquele olho-puxado lhe dar um copo d’água. Dar um copo d’água a ele! Quando a fonte de todo o seu sofrimento podia perfeitamente ser aquela água. Era o tipo de loucura que lhe ia pela cabeça.

“Ok, Les, você está se saindo bem. Muito bem”, disse Louie. “Agora é só ir enfrentando um prato de cada vez. Até aqui, tudo bem. Agora quero que você pegue o menu. Só isso. Só o menu. Você vai pegar o menu, abrir, e eu quero que você olhe as sopas. A única coisa que você tem que fazer agora é escolher a sua sopa. Só isso. Se você não consegue se decidir, a gente decide por você. Aqui tem uma sopa de wonton fantástica.”

“Porra de garçom”, exclamou Les.

“Ele não é garçom, Les. O nome dele é Henry. Ele é o dono. Les, o negócio é se concentrar na sopa. O Henry está aqui pra cuidar do restaurante dele. Pra ver se está tudo correndo bem. Nem mais, nem menos. Ele não está sabendo de nada dessa história toda. Não sabe e não quer saber. E a sopa?”

“Vocês vão pedir o quê?” Ele tinha dito isso. Ele, Les. No meio de todo seu desespero, ele, Les, havia conseguido se desvencilhar de seu tormento mental e perguntar o que eles iam pedir.

Wonton”, responderam todos.

“Está bem. Wonton.”

“Ok”, disse Louie. “Agora a gente vai pedir o resto da comida. Vamos dividir os pratos? É exigir demais de você, Les; você prefere pedir uma coisa só para você? O que você quer, Les? Frango, legumes, porco? Quer lo mein? Com macarrão?”

Ele tentou ver se conseguia repetir o feito. “Vocês vão pedir o quê?”

“Bom, Les, uns vão pedir porco, outros preferem carne...”

“Tanto faz!” E para ele tanto fazia porque tudo aquilo estava acontecendo num outro planeta, aquele faz-de-conta de pedir comida chinesa. Não era isso que estava acontecendo na verdade.

“Porco frito? Porco frito pro Les. ok. Agora, Les, é só você se concentrar que o Chet vai pôr chá na sua xícara. Tudo bem? Tudo bem.”

“Só não quero essa porra desse garçom aqui.” Porque tinha detectado algum movimento com o rabo do olho.

“Garçom, garçom...”, chamou Louie. “Por favor, pode ficar aí mesmo que a gente leva o nosso pedido. Se o senhor não se importa. A gente leva o pedido até o senhor — pode ficar aí mesmo.” Mas pelo visto o garçom não estava entendendo, e, quando ele mais uma vez fez menção de aproximar-se, Louie levantou-se com dificuldade porém depressa, apesar das pernas avariadas. “Garçom! Nós vamos levar o pedido até o senhor. Nós. Levamos. Ao senhor. Certo? Certo”, disse Louie, voltando a sentar. “Muito bem”, disse, “muito bem”, olhando para o garçom, que estava imobilizado a cerca de três metros da mesa. “Isso mesmo, meu senhor. Perfeito.”

O Palácio da Harmonia era um lugar escuro, com plantas artificiais espalhadas pelas paredes e cerca de cinquenta mesas enfileiradas ao longo do salão comprido. Apenas umas poucas estavam ocupadas, e todas ficavam longe da mesa onde os cinco homens haviam se instalado, de modo que os outros fregueses pareciam não estar percebendo nada. Por precaução, Louie sempre pedia a Henry que os instalasse numa mesa longe de todas as outras. Louie e Henry já haviam passado por esse tipo de coisa antes.

“Ok, Les, está tudo sob controle. Agora você pode largar o menu. Les, larga esse menu. Primeiro a mão direita. Agora a esquerda. Isso. O Chet dobra ele pra você.”

Os dois grandalhões, Chet e Bobcat, estavam um de cada lado de Les. Louie os havia escalado para atuar como seguranças, e eles saberiam o que fazer se Les desse algum passo em falso. Swift estava sentado do outro lado da mesa redonda, junto a Louie, que estava bem em frente a Les. No tom de voz solícito de um pai que ensina o filho a andar de bicicleta, Swift dizia a Les: “Eu me lembro da primeira vez que vim aqui. Achei que não ia conseguir. Você está se saindo muito bem, mesmo. Eu, da primeira vez, nem entender o menu eu conseguia. As letrinhas ficavam dançando na minha frente. Eu achei que ia pular pra fora pela vidraça. Dois caras tiveram que me levar pra rua porque eu não conseguia ficar quieto na cadeira. Você está se saindo muito bem, Les”. Se Les fosse capaz de perceber qualquer coisa além do tremor de suas mãos, teria se dado conta de que era a primeira vez que via Swift sem tiques nervosos. Sem tiques e sem reclamações. Era por isso que Louie o havia chamado — ajudar uma pessoa a enfrentar o restaurante chinês era a coisa que Swift sabia fazer melhor neste mundo. Ali no Palácio da Harmonia, como em nenhum outro lugar, por algum tempo Swift parecia recuperar o senso da realidade. Ali quase dava para esquecer que ele era uma pessoa que rastejava pela vida. Ali se manifestava, naquele caco humano, ressentido e doente, um vestígio minúsculo e esfarrapado do que outrora tinha sido coragem. “Você está indo muito bem, Les. Muito bem. É só tomar mais um pouquinho de chá”, sugeriu Swift. “Deixa o Chet pôr mais chá na sua xícara.”

“Respira”, disse Louie. “Isso. Respira, Les. Se você não conseguir se agüentar depois da sopa, a gente vai embora. Mas você tem que tentar agüentar até o final do primeiro prato. Se você não conseguir ir até o fim do porco frito, tudo bem. Mas a sopa você tem que agüentar até o fim. Vamos combinar um código, pra se você precisar sair. Uma senha pra você dizer se realmente não der para agüentar mais. Que tal ‘folha de chá’? É só você dizer isso que a gente vai embora. Folha de chá. Se precisar, é só dizer. Mas só se precisar mesmo.”

O garçom estava parado a uma pequena distância, segurando a bandeja com as cinco tigelas de sopa. Chet e Bobcat se levantaram de um salto, pegaram as tigelas e as trouxeram até a mesa.

Então Les sente uma vontade forte de dizer “folha de chá” e sair dali. Por que ele não faz isso? Eu tenho que sair daqui. Eu tenho que sair daqui.

Repetindo mentalmente “eu tenho que sair daqui”, ele consegue entrar numa espécie de transe e, mesmo sem o menor apetite, começa a tomar a sopa. Ingerir um pouco de caldo. “Eu tenho que sair daqui”, e isso anula o garçom, anula o dono, mas não anula as duas mulheres que, numa mesa junto à parede, estão abrindo vagens e jogando as ervilhas dentro de uma panela. A dez metros dali, e Les consegue detectar o aroma da colônia barata que as duas olhos-puxados passaram atrás das orelhas — para ele, é um cheiro tão pungente quanto cheiro de terra. Os mesmos poderes fenomenais que lhe permitiram detectar o cheiro de um franco-atirador sujo na escuridão indevassável de uma selva do Vietnã, e desse modo sobreviver, fazem com que ele agora sinta o cheiro das mulheres e comece a entrar em parafuso. Ninguém lhe avisou que ia haver mulheres fazendo aquilo no restaurante. Quanto tempo elas vão ficar fazendo aquilo? Duas moças. Duas olhos-puxados. Por que elas estão sentadas ali fazendo aquilo? “Eu tenho que sair daqui.” Mas ele não consegue se mexer porque não consegue desprender sua atenção das mulheres.

“Por que é que aquelas mulheres estão fazendo aquilo?”, Les pergunta a Louie. “Por que elas não param de fazer aquilo? Elas têm que ficar fazendo aquilo o tempo todo? Vão ficar fazendo aquilo sem parar? Qual o motivo? Alguém pode me dizer qual é o motivo? Manda essas mulheres pararem de fazer aquilo.”

“Calma”, diz Louie.

“Eu estou calmo. Eu só queria saber — elas vão ficar fazendo aquilo o tempo todo? Será que ninguém pode mandar elas pararem? Será que ninguém tem uma solução?” Está começando a levantar a voz, e impedir que isso aconteça é tão difícil quanto impedir que as mulheres trabalhem.

“Les, a gente está num restaurante. No restaurante, as pessoas preparam feijão.”

“Ervilha”, diz Les. “Aquilo é ervilha!”

“Les, você tem que tomar a sopa e esperar o próximo prato. O próximo prato: agora isso é a única coisa que existe no mundo. É tudo. Só isso. É só você comer o porco frito, e pronto.”

“Não quero mais sopa.”

“Não?”, exclama Bobcat. “Não vai querer mais não? Já está quase no fim?”

Cercado por todos os lados pelo desastre que está prestes a acontecer — por quanto tempo aquela agonia pode se transformar no ato de comer? —, Les consegue dizer, em voz baixa: “Pode pegar”.

E é nesse momento que o garçom dá um passo — ao que parece, para recolher os pratos vazios.

“Não!”, grita Les, e Louie se levanta novamente, e agora, como o domador de leões no circo — Les tenso e pronto para resistir a um ataque do garçom —, Louie aponta para o garçom com a bengala.

“O senhor fica aí”, diz Louie ao garçom. “Fica aí. Nós levamos os pratos vazios até aí. O senhor não vem aqui.”

As mulheres que descaroçavam as ervilhas pararam e nem foi preciso que Les se levantasse, fosse até lá e mostrasse a elas como parar.

E agora Henry já se deu conta do que está acontecendo, não há dúvida. Aquele sujeito alto e magro e sorridente, um sujeito jovem, de jeans e camisa de cor berrante e tênis de corrida, que serviu a água e é o dono, está olhando para o Les da porta. Sorrindo, mas olhando. Aquele homem é uma ameaça. Ele está bloqueando a saída. Esse tal de Henry não pode ficar ali.

“Está tudo bem”, Louie se dirige a Henry. “Comida muito boa. Maravilhosa. Por isso que a gente volta.” Fala então ao garçom: “É só fazer o que eu digo”. Então baixa a bengala e senta-se outra vez. Chet e Bobcat recolhem os pratos vazios e os colocam na bandeja do garçom.

“Mais alguém?”, pergunta Louie. “Alguém mais quer contar como foi a sua primeira vez?”

“Hã-hã”, exclama Chet, enquanto Bobcat se dedica à agradável tarefa de terminar a sopa de Les.

Desta vez, assim que o garçom sai da cozinha trazendo o resto da comida, Chet e Bobcat se levantam e vão até aquela porra daquele olho-puxado idiota antes que ele se esqueça e tente se aproximar da mesa de novo.

E agora ela está ali. A comida. A agonia que é a comida. Lo mein com camarão e carne. Moo goo gai pan. Carne com pimentão. Porco frito. Costela. Arroz. A agonia do arroz. A agonia do vapor. A agonia dos cheiros. Tudo ali supostamente vai salvá-lo da morte. Um elo com o Les menino. É este o sonho recorrente: o menino intacto na fazenda.

“A cara está ótima!”

“O gosto é melhor ainda!”

“Quer que o Chet ponha no seu prato ou você mesmo se serve, Les?”

“Sem fome.”

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Philip Roth (1933-2018) foi um renomado escritor americano, considerado um dos principais autores da literatura contemporânea. Sua obra abrange uma variedade de temas, incluindo a experiência judaica-americana, questões de identidade e sexualidade, e muitas de suas obras são conhecidas por sua exploração provocativa da condição humana. Roth recebeu vários prêmios literários ao longo de sua carreira, incluindo o Prêmio Pulitzer de Ficção.