História alternativa do Flan - Patricia Portela


Hífen
Patricia Portela
2022
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Flan é uma palavra derivada do alto alemão Flado, e significa bolo ou objeto plano.

Bolo plano parece-me uma definição apropriada para esta região que, apesar de aparentemente doce, é chata, e sendo aparentemente gastronómica e caseira, engole mais sapos de pacote do que outras e frescas iguarias.

Flan é também o nome de uma celebrada batalha que deu origem ao mais importante feriado na Flandia. Essa batalha foi ganha não pelo sangue dos seus soldados, como muitas, nem com a astúcia dos seus estrategas, como algumas, mas por envenenamento premeditado do inimigo através da distribuição gratuita de quantidades massivas de pudins durante uma alegada trégua daquela que foi a guerra mais prolongada do Continente.

Desde o dia em que um pudim definiu a fronteira pela qual todos os habitantes da região se matavam aos milhares há centenas de anos, uma quantidade inapropriada de flans passou a ser cozinhada, com regularidade, na Flandia. Estes pudins podiam ser polvilhados com canela, com açúcar, com piripíri, malagueta, wasabi, ovo em pó, pimenta-da-Jamaica ou outras especiarias.

E comiam-se de olhos fechados, li algures, para melhor se experienciar e reviver a surpresa coletiva do envenenamento original que ofereceu tréguas à região.

O pudim flan é o doce tradicional de eleição e um símbolo de unidade que a Flandia só reúne na doçaria. Não há um flan que não se deleite com um pudim, mesmo que todos os anos uma quantidade gritante de conterrâneos (e mesmo turistas) acabe os festejos do feriado regional no hospital central – onde agora funciono a tempo inteiro –, sofrendo de graves intoxicações alimentares e indigestões provocadas pelos ingredientes-surpresa adicionados com frequência a esta sobremesa.

O líquido usado para a confecção do pudim é um pouco irrelevante, pode ser leite de cabra, de vaca, de amêndoa, de burra, queijo creme, iogurte e por aí afora. Serve apenas para dar sabor, não tendo qualquer impacto na consistência. O truque para a sua consistência deve-se a um fenómeno extraordinário que ocorre durante a cozedura em banho-maria e que impede o interior do pudim de ficar demasiado cru, enquanto o seu exterior não deve ficar demasiado cozido. Ah! E o molho caramelo, que se mantém líquido, mas espesso, dando ao pudim um aspecto dourado por cima enquanto está completamente queimado por baixo.

«Ah!» é uma expressão que os flans colocam no início de frases que se lembram de repente de dizer e que não se lembravam um segundo atrás. É uma palavra que não é uma palavra, é um (tre)jeito que pertence à oralidade e não à linguagem escrita. Decidi incluir este trejeito, de vez em quando, por entre estas notas, para dar um tom retro-humano ao meu discurso, apelando assim à vossa atenção, também ela, ainda humana. Tenho vindo a descobrir que vocês gostam de reconhecer afinidades em tudo o que veem pela primeira vez, algo curioso e reveladoramente insensato.

O momento mais esperado desta receita é aquele em que o clássico ramekin de louça vem para a mesa virado ao contrário e pronto a ser desenformado.

Ah! (Tenho de treinar os Ah!) Esta é mesmo uma iguaria que se deve apresentar de cabeça para baixo. Para que o caramelo escorra pelo pudim até ao prato que o serve, disfarçando as arestas e as imperfeições e, por fim, a sua verdadeira forma. Um ramekin, por sua vez é um recipiente com capacidade para uma dose individual, de 50 mililitros, ou familiar, de 250 mililitros, muito útil em qualquer cozinha, tanto para fazer sopa de feijão ou de cebola como para derreter chocolate, ou ainda para levar uma lasanha ou um souflé ao forno. Mas os últimos flans já só usavam formas de metal que duravam uma vida inteira, resistiam a altas temperaturas, a chamas muito acesas e nem precisavam de ser lavadas, pois só eram usadas para pudins. Podíamos encontrá-las em forma de corações, estrelas, flores, automóveis, bonecas, embora a forma mais popular continuasse a ser a do copo.

Na Flandia, um pudim é algo que se pode servir em qualquer ocasião e pode ser comido como primeiro, segundo ou terceiro pratos, ou ainda como ceia. Na prática, não é aconselhável comê-lo sozinho, desamparado, sem nada a acompanhar para que não se lhe dê outra importância além do que é: um pudim. Talvez por isso fosse habitual chegar à mesa acompanhado não só de marmelada, doce de leite, compotas, coco ralado, rum, uísque, mas também de peixe grelhado, espinafres, tornedó com batatinhas a murro, jardineira, filetes, camarões, lagosta, arroz de cabidela e até mesmo sopas, frutas de época ou café.

O pudim teve um grande alcance na culinária Flan ao longo dos dois últimos séculos (o equivalente a duzentos anos ou a um pouco mais de 73 000 dias) e continua a ser a sobremesa perfeita para figurar como segunda ou terceira escolhas em qualquer ementa de restaurante. Investiguei e cheguei à conclusão de que a razão para esta popularidade não está no seu sabor mas no facto de ser uma receita que se pode preparar de véspera, em grandes quantidades, e guardar durante vários dias sem que azede.

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Patrícia Portela (Lisboa, 1974), é uma escritora portuguesa e autora de diversos projetos artísticos transdisciplinares. "Hífen é uma obra construída a partir de fragmentos de diários, cadernos, pensamentos e reflexões de vários seres, humanos e não humanos, num tempo em que a vida como ela era estava mesmo à beirinha do abismo mas ainda não nos tinha caído do regaço."