A Alma Trocada
Rosa Lobato de Faria
2013
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— Então, meninos. Vamos parar com a discussão à mesa. O coq au vin está uma delícia. A Adelina perdeu a manhã a cozinhá-lo. E sabem muito bem que a comida engolida assim, no meio da fúria, cai no estômago como uma pedra.
Quem é que está furioso? Eu não. Estou a adorar! Ela põe-lhe natas, não é, mãe? E uma gema? E sumo de limão?
Respeita-me, Teófilo! Tem ao menos a decência de me ouvires! Se não fosse o respeito pelos teus pais, que é uma coisa que tu nem desconfias o que seja, levantava-me e saía aquela porta para sempre.
Por mim estás à vontade. Mas tenho a certeza que ainda tens um litro de veneno para bolsar em cima do meu coq au vin.
Téo! Não admito esse tipo de linguagem, muito menos à mesa, disse o meu pai.
Levante-se ou esteja calado. E lá estava eu com seis anos a soprar a minha peninha.
Ninguém percebe nada. Será que não entendem que provoquei de propósito esta situação para poder dizer à Raquel, isto não tem pés nem cabeça, eu não gosto de ti e tu não gostas de mim, nunca seremos um casal, vamos abrir o jogo e acabar de uma vez para sempre com esta tortura.
Apetecia-me pensar um bocadinho no Hugo, mas não me dão tréguas. Irei dormir com ele esta noite, ao contrário do combinado, mas antes tenho ainda uma longa e pesada tarefa pela frente.
Se pensas que preciso de ti para a tese, estás muito enganado.
Devo ter perdido o fio da discussão porque não me parece que isto cole com as últimas palavras que lhe ouvi. Mas não tem a menor importância. Estou-me lixando para a tese dela. Para ela. Para as fúrias dela.
Podíamos talvez ir jantar fora esta noite e acertar umas agulhas. Que dizes, Raquel?
Ficam todos pasmados. Eu disse isto com a maior doçura que me foi possível para que pensassem numa reconciliação à vista. Ninguém se atreve a responder. Nem a Raquel.
E agora comia mais um bocadinho de galinha a que chamam galo mas é uma confusão muito natural, a que todos temos direito... Leva conhaque flambado, suponho. A Adelina está de parabéns!
À mesa do restaurante que escolhi caro e discreto, observo a Raquel. Enfeitou-se bastante. Traz o casaco de veludo preto com strass nas bandas que sai à cena nos dias especiais. Desejo muito que não o dispa porque não estou seguro da correcta depilação das axilas.
Escolhemos com toda a calma. Eu, uma entrada e pouco mais, ela um prato de carne razoavelmente substancial. Nas raras vezes em que jantamos fora nunca escolhemos a mesma comida. O meu estômago é frágil, o dela é sólido. O coq au vin do almoço, de que abusei, deixou-me satisfeito para muitas horas. Escolho um tinto de boa qualidade para rimar com a carne dela. Entusiasma-se. É apreciadora.
A Raquel tem olhos de rato. Não só por serem pequenos e escuros, mas porque são astutos. Espreitam-me para tentar descobrir a razão daquele convite. Eu deixo-a sofrer.
Está macia como veludo. Evita falar da tese para não voltarmos aos acontecimentos da manhã. Interpreta este jantar como uma proposta de tréguas. Nem sonha o que a espera.
A minha avó Jacinta costuma dizer que as más notícias se dão à sobremesa. É isso que vou fazer. Ela pediu trouxas-de-ovos e eu deixo-a lambuzar-se até à última gota de calda e de repente, sem aviso, digo, sabes que sou gay, não sabes? Estás farta de saber mas tens andado a disfarçar, a seguir o exemplo dos meus pais. Vocês acham que, se me casarem, fica tudo resolvido. Mas acontece que agora apaixonei-me, por isso o casamento foi definitivamente à viola. Não tenho o direito de dar cabo da tua vida.
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Rosa Lobato de Faria (1932-2010) foi uma escritora, atriz e tradutora portuguesa. Ela teve uma carreira multifacetada, contribuindo para várias áreas artísticas ao longo de sua vida. Como autora, escreveu romances, poesia, contos e peças de teatro. Muitos de seus trabalhos abordam temas como amor, identidade, memória e relações familiares.