Utz
Bruce Chatwin
1988
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Voltou a atenção para a comida.
No primeiro dia em Vichy comprara, numa livraria da Rue Clemenceau, um “guia gastronômico” da região. Sempre fora cuidadoso com o estômago, sempre fizera amizade com chefs.
Quantas vezes, na época da guerra, sobretudo nos momentos de terror, não recordara os prazeres da mesa! No dia em que a Gestapo o levou para interrogá-lo, ele não conseguira se concentrar nas abstrações da morte ou da deportação: apenas na lembrança de um prato específico de haricots verts, num restaurante na Provença, à beira de uma estrada coberta de neve.
Mais tarde, durante a pior escassez de inverno, nos meses de repolho, repolho, repolho e batatas, consolou-se com a ideia de que, quando o bom senso retornasse e as fronteiras fossem abertas, comeria mais uma vez na França.
Estudou o guia com a dedicação obstinada que em geral reservava à caça da porcelana: onde encontrar as melhores quenelles aux écrevisses, os melhores cervelas truffé ou um poulet à la vessie. Ou as sobremesas — bourriouls, bougnettes, flaugnardes, fouasses. (Sentia-se o sabor só de ouvir esses nomes!) Ou o raro vinho branco Château Grillet, que, dizia-se, sabia a flor de videira e amêndoas — e agia como uma jovem caprichosa.
Pondo à prova seus novos conhecimentos, reservou uma mesa num restaurante ao lado do Allier.
O dia estava quente e ensolarado: quente o bastante para comer ao ar livre, no terraço, debaixo de um toldo listrado de verde e branco, que se agitava preguiçosamente na brisa. Em cada lugar havia três copos de vinho. Ele observou os reflexos dos choupos debruçados sobre o rio e as andorinhas roçando a superfície. Na margem distante, pescadores e suas famílias faziam piquenique na relva.
Os garçons estavam alvoroçados com a visita anual de um “príncipe da gastronomia”. Ele chegara depois de Utz, com seu rosto vermelho e sua barriga saltada. Enfiou o guardanapo no colarinho e se preparou para enfrentar um almoço de oito pratos.
Por fim, quando chegou o cardápio, Utz dirigiu um sorriso agradecido ao maître d’hôtel.
Correu os olhos pela lista de especialidades. Escolheu. Mudou de idéia. Escolheu de novo: sopa de alcachofra, truta Mont-Dore e leitão à la lyonnaise.
“Et comme vin, monsieur?”
“O que o senhor sugere?”
Julgando-o um ignorante, o sommelier apontou para duas das garrafas mais caras da lista: um Montrachet e um Clos Margot.
“Não tem Château Grillet?”
“Non, monsieur.”
“Pois bem”, Utz aquiesceu obedientemente. “O que o senhor recomendar.”
A refeição não correspondeu à expectativa. Não pela qualidade nem pela apresentação: mas a sopa, embora requintada, parecia insípida; a truta estava sufocada num molho de queijo Gruyère, e o leitão fora recheado de outra coisa.
Ele olhou de novo, com inveja, para as pessoas que faziam piquenique na margem oposta. Uma jovem mãe corria para salvar o filho, que engatinhara até a beira da água. Utz gostaria de estar com eles: partilhar suas tortas caseiras, rústicas, que certamente tinham gosto de alguma coisa! Ou ele havia perdido o paladar?
A conta foi mais alta do que ele esperava. Foi embora de mau humor. Sentia-se inchado e um pouco tonto.
Também chegara a uma conclusão deprimente: o luxo só é luxuoso em circunstâncias adversas.
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"Utz" é um romance escrito por Bruce Chatwin, publicado em 1988. Bruce Chatwin foi um renomado escritor e jornalista britânico conhecido por suas obras de não ficção e ficção, muitas vezes misturando elementos de ambas. "Utz" é um dos seus romances mais conhecidos e foi indicado para o Prêmio Booker.