Sopa em lata - Rubem Fonseca


O Romance Negro 
e outras histórias 
Rubem Fonseca
2011
________________________________

O homem olha para a saca, como se fosse um quebra-cabeça. Úrsula o observa através do binóculo. Afinal ele retira as mercadorias: oito latas de sopa, não, nove latas de sopa, um pedaço de pão preto envolto em papel celofane, e uma garrafa de vinho tinto. Depois pega a garrafa de vinho e fica olhando para o rótulo. A saca parece vazia, mas o homem retira dela uma última lata, de atum. Em seguida, com o livro na mão, sai da cozinha, deixando a luz acesa. Úrsula espera, inutilmente, que ele volte para arrumar as latas num dos armários. Antes de dormir Úrsula lê o rótulo da garrafa de vinho sobre a mesa num ângulo conveniente para seu binóculo: Crianza de Cavas Murviedo, em letras negras. Em vermelho, Vino Tinto Valencia. A garrafa tem em torno dela um fio dourado entrançado em formas losangulares.

O homem nunca toma a sopa à mesma hora; nem senta na mesma cadeira, cada vez que sorve a sopa. Às vezes come, junto com a sopa, um pedaço do pão preto. Com um abridor manual retira a tampa da lata, coloca a lata de sopa em uma pequena panela com água, espera a água ferver, tira a lata da panela, põe a lata sobre um prato e toma a sopa diretamente da lata. Ele não deve gostar de lavar louça, provavelmente. Sobre a bancada estão várias latas de sopa vazias, com as colheres dentro. Mas nem sempre ele usa uma colher, às vezes bebe diretamente da lata, provavelmente as sopas mais ralas.

Certas ocasiões ele aparece na cozinha com um charuto aceso entre os dedos, coloca o charuto num pires que apanha ao acaso no armário, toma a sopa e depois esquece o charuto no pires. Há muitos pires espalhados sobre a mesa, com tocos de charutos apagados.

Outra coisa que ele faz sempre é pegar a garrafa de vinho e ler o rótulo. Úrsula cronometra o tempo que ele gasta para ler o rótulo: dez segundos.

Daqui a pouco ele não terá mais nem colheres nem xícaras limpas e terá que lavar uma delas.

Ele toma a sopa curvado sobre a lata, como um cão, quando usa uma colher.

Úrsula, se sair do seu prédio e caminhar para o lado direito e dobrar a esquina, pode chegar em frente à porta de entrada do edifício do seu vizinho com apenas alguns passos.

Afinal acabaram as colheres e o homem pega uma colher suja de uma das latas vazias e toma a sopa que esquentou. Neste dia Úrsula sai do seu apartamento; na rua, segue pelo lado direito, dobra a esquina.

O prédio do seu vizinho tem o número 52. É um edifício velho, reformado, com uma porta antiga, grande, de madeira. Um aviso diz que precisam de faxineira no apartamento 12. Úrsula não sabe qual o apartamento do seu vizinho, mas espera que seja o 12. Provavelmente o homem cansou-se da sujeira da sua cozinha e resolveu arranjar alguém para limpá-la. Ele mesmo pode fazer isso, mas há homens que gastam dinheiro como bobos. Úrsula volta para seu posto de observação.

Não aparece nenhuma faxineira na cozinha. O que ela vê talvez não seja o apartamento 12.

Ninguém pode viver comendo apenas um prato de sopa com pão preto, e o pão preto somente de vez em quando. Ele deve comer fora, certamente. Mas Úrsula tem a impressão de que o homem está emagrecendo.

No dia em que saiu e foi ver a porta do prédio do vizinho, Úrsula aproveitou e comprou duas latas de sopa, das que o homem toma, uma de creme de brócolis, outra de legumes variados. Ela nunca tomou sopa de lata, as comidas em conserva estão contaminadas de porcarias químicas.

_________________________

Contista, romancista, ensaísta, roteirista e “cineasta frustrado”, Rubem Fonseca precisou publicar apenas dois ou três livros para ser consagrado como um dos mais originais prosadores brasileiros contemporâneos. Com suas narrativas velozes e sofisticadamente cosmopolitas, cheias de violência, erotismo, irreverência e construídas em estilo contido, elíptico, cinematográfico, reinventou entre nós uma literatura noir ao mesmo tempo clássica e pop, brutalista e sutil — a forma perfeita para quem escreve sobre “pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado”.