Caçarola de peixes com mexilhões e mariscos - Francisco José Viegas


As Duas Águas do Mar
Francisco José Viegas
2013
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Era um prato delicado e amava-o, menos por isso, de ser delicado, do que por ir prepará-lo para Isabel. Cortou em rodelas finíssimas duas cebolas novas, de que o suco, jovem e saboroso, alimentaria de forma mais suave um refogado ligeiro e sem pecado. Dispôs algumas das rodelas, de seguida, numa caçarola grande onde já tinha vertido azeite e, sem deixar que aloirasse o conjunto, juntou os pedaços de peixe já escolhidos e temperados desde o fim de tarde. Abrótea de boa espessura de que tinha escolhido o melhor lombo. Tiras de tamboril temperado de pimenta-da-terra e noz-moscada para perder o habitual sabor quente e ácido, segundo ele pensava. Carpa vinda da Lagoa das Sete Cidades. Juntaria depois os mexilhões e os mariscos escolhidos e preparados com paciência. Quando sentiu o ruído do refogado a ganhar cor e consistência, juntou duas folhas de louro ainda pouco seco, dentes de alho esmagados, uma pequeníssima quantidade de estragão e um copo de vinho branco. Encheu novamente o copo e bebeu um gole, embora soubesse que o vinho branco não era recomendado para o seu estômago e talvez não fosse, afinal, recomendado para o seu fígado, porque pressentiu que em breve chegaria uma azia ligeira, condensada, a apertar-lhe o coração. Mas resistiu a essas dúvidas e bebeu o vinho enquanto partia fatias de pão de milho, não muito finas, e as colocava numa pilha junto ao fogão. Depois iria fritá-las com suavidade, para que não ficassem demasiado rijas. Quando sentiu que a caçarola merecia mais atenção, destapou-a e sacudiu-a para que o peixe que já libertara os seus líquidos e absorvera o vinho branco, não se colasse ao fundo. Do estufado, ligeiro e curto, resultara um caldo muito espesso, onde descobriu os sabores de cada qualidade de peixe. Sabia que a carpa de verão era a melhor, depois da desova, que ocorria nos finais da primavera. Preparara os lombos da carpa com algum vinagre, a fim de fazer desaparecer o sabor incómodo e triste do lodo e das águas mansas da lagoa onde fora pescada e pensara, nessa altura, um dia atrás, que talvez devesse destiná-la para assar ou utilizá-la num preparo que misturaria assadura e refogado, com cerveja, ou ainda numa fritura lenta que absorvesse o aspecto carnudo (embora esta que comprara não fosse de tamanho superior) e lhe realçasse os temperos a juntar na preparação. Pensara também em recheá-la de cogumelos, anchovas e talvez algumas ervas, mas não estava disposto a afrancesar um peixe que por acidente se introduzira nas águas calmas da Lagoa das Sete Cidades. […]

Para além disso, também o tamboril o preocupara, é certo, dado não ser fácil obtê-lo. Mas Isabel merecia-o, sem dúvida, de modo que, sem apurar mais o caldo inicial, escorreu os pedaços de peixe para uma frigideira onde já colocara manteiga e alho e deixou que ganhassem a consistência de pequenas frituras que adquiririam, entretanto, cor e novo sabor, com uma lentidão amorosa que sabia ser necessária para se cozinhar com o mínimo de perfeição. Depois, levou de novo ao fogo a caçarola com o caldo, de onde retirara as ervas já utilizadas, acrescentando apenas um ramo com algumas folhas de hortelã verde e uma medida curta de brandy, à falta de um conhaque realmente digno, e, finalmente, a manteiga quente onde o peixe fritara durante cinco minutos. Retirou o peixe para uma caçarola de barro, tapando-o de seguida e, na mesma frigideira, sem limpar, depositou algumas rodelas de cebola crua que tinham sobrado do refogado anterior, e a gordura necessária para um outro refogado ainda mais ligeiro, seguido de nova fritura. Mas, agora, em vez de peixe, introduziu mexilhões frescos, algumas amêijoas que tivera de abrir antes, e camarões descascados, sentindo quase de seguida o odor estranho de marisco a fritar, coisa que sempre lhe pareceu tropical, uma imagem do verão das ilhas; agitou bem a frigideira, viu as peças marítimas alourarem e largarem os seus sucos, que rapidamente se transformavam em molho que ligava com a gordura que os recebera. Cinco minutos, e não mais, devia demorar esta etapa, para que o peixe permitisse que se formasse, na sua caçarola de barro, um vapor condensado e aromático; seria sobre ele que lançaria o marisco, reservando a gordura para fritar as pequenas fatias de pão de milho, cortadas antes. Quando Isabel chegasse, o pão estaria amolecido, conservando no entanto a textura estaladiça do seu exterior, já depositado sobre o conjunto obrigando o preparado a reter os sabores e os aromas. Assim fez: colocou, com cuidado, os pedaços de pão sobre os mariscos e o peixe, deixou em cima um polvilhado de coentros frescos, pouquíssima salsa e algumas folhas de hortelã picadas muito miudamente. Tapou de novo a caçarola, que embrulhou num pano húmido. Para servir, teria apenas de sujeitá-la a uma passagem rápida pelo fogo, e de fazer acompanhar o delicado conjunto com batatas cozidas em pouca água.

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FRANCISCO JOSÉ VIEGAS nasceu em 1962. Professor, jornalista e editor português, é responsável pela revista Ler e foi também diretor da revista Grande Reportagem e da Casa Fernando Pessoa.