Hábitos alimentares no Brasil de 1808 - Laurentino Gomes


A maneira dos ricos comerem

Laurentino Gomes

O inglês Luccock faz um retrato divertido dos hábitos dos cariocas. Segundo ele, a família geralmente passava o tempo nos aposentos da parte de trás das casas. As mulheres, sentadas em roda, costuravam, faziam meias, rendas, bordados e outros trabalhos manuais. Era também ali que todos se reuniam para fazer as refeições, usando como mesa uma tábua colocada sobre um cavalete no meio da sala. “A refeição principal ocorre ao meio-dia, por ocasião da qual o chefe da casa, sua esposa e filhos às vezes se reúnem ao redor da mesa; é mais comum que a tomem no chão, caso em que a esteira da dona da casa é sagrada, ninguém se aproximando dela senão os favoritos reconhecidos”, registrou Luccock. “Somente os homens usam faca; mulheres e crianças se servem com os dedos. As escravas comem ao mesmo tempo, em pontos diversos da sala, sendo que por vezes suas senhoras lhes dão um bocado com as próprias mãos. Quando há sobremesa, consta ela de laranjas, bananas e outras poucas frutas.”

Convidado para um desses jantares na casa de uma família rica, Luccock surpreendeu-se ao descobrir que cada pessoa deveria comparecer com a própria faca, “em geral larga, pontiaguda e com cabo de prata”. À mesa, observou que “os dedos são usados com tanta frequência quanto o próprio garfo”. Mais do que isso, era comum uma pessoa se servir do prato do vizinho com as mãos. “Considera-se como prova incontestável de amizade alguém servir-se do prato de seu vizinho; e, assim, não é raro que os dedos de ambos se vejam simultaneamente mergulhados num só prato”, anotou. A refeição era acompanhada “de uma espécie de vinho fraco”, [pág. 159] que era bebido em copos, em vez de taças. Devido ao efeito do álcool, ao final todos os convivas se tornavam barulhentos. “Exagera-se a gesticulação [...] e desfecham punhadas no ar, de faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e faces escapem ilesos”, observou o inglês. “Quando facas e garfos se acham em repouso, ficam em cada uma das mãos, em posição vertical e descansando sobre a extremidade do cabo. Quando dela não se tem mais necessidade, limpa-se ostensivamente a faca na toalha de mesa e devolve-se à bainha por detrás das costas.”

O pintor Jean Baptiste Debret, que chegou ao Brasil com a Missão Artística Francesa de 1816, também ficou escandalizado com a falta de boas maneiras dos ricos durante as refeições: “O dono da casa come com os cotovelos fincados na mesa; a mulher, com o prato sobre os joelhos, sentada na sua marquesa, à moda asiática; e as crianças, deitadas ou de cócoras nas esteiras, lambuzam-se à vontade com a pasta de comida nas mãos. Se for mais abastado, o negociante acrescenta à refeição lombo de peixe assado ou peixe cozido na água com um raminho de salsa, um quarto de cebola e três ou quatro tomates. Mas, para torná-lo mais apetitoso, mergulha cada bocado no molho picante. Completam a refeição bananas e laranjas. Bebe-se água unicamente. As mulheres e crianças não usam colheres nem garfos; comem todos com os dedos”.

A carne fresca era uma raridade. Vinha de longe, de até mil quilômetros de distância. Viajando por estradas precárias, em boiadas que desciam de Minas Gerais ou do Vale do Paraíba, muitos bois morriam pelo caminho, de fome ou de cansaço. “Aqueles que aguentavam até o fim chegavam em condições dignas de lástima ao matadouro público”, conta [pág. 160] Luccock. Situado perto do centro do Rio, o matadouro era local “da máxima sujeira”, segundo ele. As condições do animal, bem como a forma como era abatido e transportado, tornavam a carne tão ruim “que só mesmo a necessidade premente, ou a sua vista constante e sempre nas mesmas péssimas condições, poderia levar a menos delicada das pessoas a provar dela”. A carne de porco era vendida, igualmente, “em estado bastante doentio”. Por essa razão, a carne seca, que chegava de muito longe, depois de tratada com sal e curada ao sol, era muito mais usada.

Apesar da escassez de carne de gado fresca, a população do Rio de Janeiro tinha uma dieta rica e variada. Era composta por muitas frutas — como banana, laranja, maracujá, abacaxi, goiaba —, peixes, aves, verduras e legumes. O pão feito de farinha de trigo era difícil de achar e muito caro. A farinha de mandioca ou milho era um alimento usado em toda a colônia. Compunha com a carne seca e o feijão o tripé básico da alimentação brasileira.

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1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.  — São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2007.