Casas Pardas
Maria Velho da Costa
2013
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Na tua mão esquerda, qual orbe a elas intangível, tu tens uma cebola com toda a sua espessura de capas sob capas de carne de água, seu labirinto de veios olorosos, esfera armilar que outras e sempre mais encerra, pequena lua axilar que adere aos dedos e semelha o cheiro do corpo que a dispõe curvado sobre a terra e depois, avolumado o seu nutriente enigma, a arranca puxando-lhe a verde cabeleira inútil. A cebola existe à tua mão esquerda na indestrutível resistência da matéria orgânica à inorgânica, mas ainda na indefectível misteriosa aliança das suas trocas. À tua mão direita está a faca que vem do sílex lavrado por pancadas secas, refletidas e também da domação do fogo. Podes abrir a cebola com a faca, cumprindo assim antiquíssimos modos de decifração dos dentros: acharás que o interior das duas calotes separadas numa só incisão de face a face, sob a palha da primeira capa, a mais rica de cor, a mais capaz de refletir a luz, mas seca, incomestível, acharás estrias muito semelháveis às que singularmente demarcam a insemelhança da polpa dos teus dedos com qualquer outra. Mas é preciso aproximar a vista, vesgar. Sofrer a perplexidade de uma indagação in extremis, próxima até doer.
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Ficcionista portuguesa nascida em Lisboa a 26 de junho de 1938, Maria Velho da Costa morreu a 23 de maio de 2020.