Receita de lentilhas em 'A Morte Feliz' romance póstumo de Albert Camus 1971

Lentilhas com linguiça nos dedos

— Hoje é a sua vez de cozinhar.

— Está bem — diz Patrice, sem se mexer.

Rose sai, com sua pasta de estudante, na qual ela põe, indiferentemente, os pimentões do almoço e o volume III da História, tediosa, de Lavisse. Patrice, encarregado de preparar lentilhas, fica flanando até 11 horas, contempla a grande peça de paredes ocre, mobiliada com sofás e estantes, com máscaras verdes, amarelas e vermelhas, com tapeçarias listradas. Depois, com pressa, separa as lentilhas, põe azeite na panela, uma cebola para refogar, um tomate, um molho de salsa e cebolinha, muito atarefado, amaldiçoando Gula e Cali, que protestam a sua fome. No entanto, Rose lhes explicou ontem:

— Saibam, bichos — disse ela — que no verão faz calor demais para se ter fome.

As quinze para o meio-dia, chega Catherine, com um vestido leve e sandálias. Precisa de um chuveiro e de um banho de sol. Será a última a vir para a mesa. Rose dirá com severidade: “Catherine, você é insuportável.” A água sibila no banheiro e eis Claire ofegante:

— Está fazendo lentilhas? Tenho uma receita ótima...

— Eu sei. Pego o creme de leite... Volte mais tarde, minha cara Claire.

É verdade que as receitas de Claire começam sempre pelo creme de leite.

— Ele tem razão — diz Rose, que acaba de chegar.

— Sim — diz o “garoto”. — Está na mesa.

Comem numa cozinha que parece também uma loja de acessórios. Há de tudo, até mesmo uma agenda para anotar as tiradas de Rose. Claire diz:

— Sejamos finos, mas simples — e come a sua linguiça com os dedos. Catherine chega com o atraso conveniente, embriagada e preguiçosa, com os olhos pálidos de sono. Tem a alma carregada de amargura em relação ao seu escritório, oito horas que ela subtrai ao mundo e à sua vida para dá-las a uma máquina de escrever. As amigas compreendem e imaginam o que seriam as suas vidas amputadas dessas oito horas. Patrice se cala.

— Sim — diz Rose, que não gosta de sentimentalismo — no fundo, isso a ocupa. E você nos fala todos os dias do seu escritório. Nós cortamos a sua palavra.

— Mas... — suspira Catherine.

— Nesse caso, vamos votar. Um, dois, três, a maioria é contra você.

— Está vendo — diz Claire.

Chegam as lentilhas, secas demais, e todos comem em silêncio. Claire, quando cozinha, ao experimentar a comida à mesa, acrescenta sempre, com um ar satisfeito:

— Mas está excelente!

A Morte Feliz
Albert Camus
1971
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Albert Camus foi um escritor, filósofo e jornalista francês, nascido em Argélia em 1913 e falecido em 1960. Ele é considerado uma das principais figuras do existencialismo e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957.