Aquele aroma lendário e evocador da infância
_____________________________________________
Em homenagem a essa lembrança sentimental, Víctor ia sempre ao Mercado Central no dia anterior ao seu aniversário, a fim de comprar os ingredientes para o fumet e os chocos frescos para o arroz. Catalão até à morte, como dizia Roser, que nunca colaborara na confecção daquela refeição festiva. Deixava-se ficar na sala, contribuindo com um concerto de piano, ou permanecia junto dele na cozinha, sentada num tamborete a ler-lhe versos de Neruda, uma ode de sabor marinho, algo como: «No revolto mar do Chile habita o róseo congro, enguia gigante de carne de neve», e era em vão que Víctor lhe fazia notar que, em lugar do congro, rei de todas as aristocráticas mesas, aquele prato era feito com simples cabeças e caudas de peixe, mais comuns e acostumadas à sopa do proletariado, ou então, enquanto Víctor aloirava em azeite a cebola e o pimento, e acrescentava os chocos cortados em rodelas, alguns dentes de alho, tomate picado e arroz, e finalizava a sua obra regando tudo com o caldo a ferver, tingida do negro da tinta dos chocos, dizia-lhe ditos engraçados em catalão, porque entre tanto ir e vir, entre tanto andar para cá e para lá, já se lhe ia esquecendo a língua materna.
Observava como o arroz ia cozendo lentamente numa paelheira. Preparava a receita em duplicado, com os ingredientes de sempre, ainda que tivesse de jantar o mesmo mais vezes durante a semana. Aquele aroma lendário e evocador da infância ia gradualmente invadindo a casa e a alma de Víctor, enquanto ele ia debicando umas anchovas e umas azeitonas espanholas, que em toda a parte se conseguiam encontrar. Essa era uma das vantagens do capitalismo, dizia-lhe Marcel, para o provocar. Víctor dava preferência aos produtos nacionais, pois, segundo ele, uma das formas de patriotismo era, em pequenos gestos, apoiar as indústrias locais, mas o idealismo fraquejava-lhe quando se tratava de assunto tão sério e sagrado como azeitonas ou anchovas. No congelador refrescava uma garrafa de vinho rosé para brindar com Roser, uma vez que o jantar estivesse pronto e servido. Pusera sobre a mesa uma toalha de linho e comprara uma meia dúzia de rosas de estufa e de velas para decorar a mesa. Ela, com a sua habitual impaciência, já teria aberto a garrafa há muito, mas, na sua condição atual, teria de se resignar a esperar. No congelador, havia também uma taça de crema catalana, cujo mais provável destino, uma vez que Víctor não era particularmente apreciador de doces, era acabar devorada pelos cães.
_____________________