Licores em Julio Cortázar

Poema licoroso

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Eu já sabia o que ia acontecer. Jorge moveu convulsivamente um braço, ajeitando-se um pouco sobre a mesa de Renato. Estava um pouco pálido, olhava fixamente para a irmã.

- Escuta, bobona, já está pronto. Ouçam os dois, agora vai começar. A palavra é menta, tudo nasce daí, vejo tudo mas não sei o que vai ser. Agora esperem, a sombra da menta nos lábios, a origem sigilosa de certas bebidas que se degustam sob luzes de fumaça, retornam algumas vezes como palavras e se somam à lembrança para não deixá-la sozinha sob as antigas luas. ("Bom poema", disse Marta em meu ouvido enquanto escrevia, rapidíssima). Tudo isto é vão, o importante continua sendo a atitude sóbria dos prédios e as nuvens baixas; no entanto, forma parte de vidas já depositadas no fundo de copos secos, com marcas de lábios na beirada onde a poeira do amanhecer se decanta, inumerável.

Então lembro de um anis seco e penetrante bebido numa casa na rua Paysandú; um refresco engolido no alto calor de Tucumán e um licor de romã flor de fogo num bar japonês de Mendoza. Nesta terra de vinhos profundos, a geografia está cheia de sabores rubros ou áureos, mostos picantes de San Juan, garrafas de Bianchi cuyano e breve glória em fuste altíssimo dos Súter legendários. Este vinho é um caracol andino, aquele é uma noite sem sono e transpassada de acéquias, e o mais amargo e humilde, o vinho de armazém em ruas de terra e salgueiros crescidos, as margens de Buenos Aires onde o fastio convoca a sede.

Jorge se deteve para respirar ruidosamente, fez um gesto estranho com a boca.

- Também é justo debruçar-se sobre a diáfana pequenez das aguardentes, que... Merda, não dá para continuar.

Ergueu-se ofegando. A cor voltava ao seu rosto, mas ele ainda estava meio ausente. Jogou-se numa cadeira.

- Espetáculo demais para tão pouco - me disse Marta. - Parece um catálogo da adega Arizu. Gostei mais dos de ontem, saíram de uma vez só e perfeitos.

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Divertimento
Julio Cortázar
1950
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Julio Cortázar foi um escritor argentino, nascido em 1914 e falecido em 1984, considerado um dos mais importantes autores latino-americanos do século XX. Sua obra é caracterizada pela experimentação formal, pela originalidade da linguagem e pela preocupação com temas existenciais e políticos. Cortázar começou sua carreira literária escrevendo poesia, mas ficou mais conhecido pelos seus contos e romances. Ele é especialmente conhecido pelo livro "O Jogo da Amarelinha", publicado em 1963, que é uma obra complexa e inovadora que mistura diversos gêneros literários e que explora temas como a liberdade, a identidade e a busca pelo sentido da vida. Outros livros notáveis de Cortázar incluem "Bestiário" (1951), uma coletânea de contos que exploram o universo fantástico dos animais, e "As Armas Secretas" (1959), uma coletânea de contos que refletem sobre a condição humana e a violência política na América Latina. Cortázar também escreveu romances como "Os Prêmios" (1960) e "62 Modelo para Armar" (1968), além de ensaios críticos e políticos. Sua obra é caracterizada pela habilidade em combinar diferentes formas de narrativa, como o fluxo de consciência, o monólogo interior e a metalinguagem. Além de sua produção literária, Cortázar foi um importante ativista político e defensor dos direitos humanos na América Latina. Ele viveu em diferentes países, incluindo Argentina, França e Espanha, e morreu em Paris, em 1984, vítima de uma doença grave. Seu legado literário e político continua a ser valorizado até hoje como uma das principais referências da literatura latino-americana.