Comilança natalina - James Joyce


Os Mortos
James Joyce
1914
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Naquele momento tia Kate veio titubeante da sala de jantar, quase torcendo as mãos de desespero.

— Cadê o Gabriel? — ela exclamou. — Onde foi que o Gabriel se meteu? Está todo mundo esperando lá, palco aberto, e ninguém para trinchar o ganso!

— Eu estou aqui, tia Kate! — gritou Gabriel, subitamente animado, pronto para trinchar um bando de gansos, se necessário.

Um ganso gordo e pardo jazia a um canto da mesa, e no outro, sobre leito de papel vincado espargido de ramos de salsa, jazia um grande pernil, despido de sua pele externa e salpicado de migalhas de pão, um belo babado de papel à roda do osso, e ao lado dele havia um corte de carne temperada. Entre esses cantos opostos passavam paralelas duas linhas de guarnições: dois pequenos monastérios de geleia, vermelho, amarelo; um prato raso pleno de blocos de manjar branco e compota vermelha, um grande prato verde em formato de folha com cabo moldado em formato de talo, no qual havia montes de passas roxas e amêndoas descascadas, um prato do mesmo conjunto no qual havia um sólido retângulo de figos de Esmirna, um prato de creme coberto de noz-moscada ralada, uma tigela pequena cheia de chocolates e doces embrulhados em papéis dourados e prata e um vaso de vidro de que se eriçavam talos altos de aipo. No centro da mesa estavam, como sentinelas de uma fruteira que sustentava uma pirâmide de laranjas e maçãs americanas, dois antiquados decantadores atarracados de vidro jateado, um contendo porto e outro, xerez escuro. No piano de armário fechado um pudim num imenso prato amarelo estava à espera, e atrás dele havia três batalhões de garrafas de cerveja preta e clara e de água mineral, alinhados segundo as cores de seus uniformes, negros os dos primeiros, com rótulos marrons e vermelhos, branco o do terceiro e menor batalhão, com faixas verdes atravessadas.

Gabriel ocupou decidido seu lugar à cabeceira da mesa e, com uma olhada para o fio da faca, meteu o garfo com firmeza no ganso. Sentia-se agora bem calmo, pois era um trinchador de primeira e adorava se ver à cabeceira de uma mesa bem servida.

— Senhorita Furlong, qual é o seu pedido? — ele perguntou. — Uma asa ou uma fatia de peito?

— Só uma fatiazinha de peito.

— Senhorita Higgins, e o seu?

— Ah, qualquer coisa, senhor Conroy.

Enquanto Gabriel e a srta. Daly trocavam pratos de ganso e pratos de pernil e carne temperada, Lily ia de convidado em convidado com um prato de batatas inglesas quentes, envolto em guardanapo branco. Isso tinha sido ideia de Mary Jane e ela também tinha sugerido um molho de maçã para o ganso, mas tia Kate disse que um bom gansinho assado sem nada de molho de maçã tinha sempre estado ótimo para ela e que ela esperava não ter que comer coisa pior. Mary Jane cuidava de seus alunos e garantia que recebessem as melhores fatias, e tia Kate e tia Julia abriam e traziam do piano garrafas de cerveja preta e clara para os cavalheiros e de água mineral para as senhoras. Era muita confusão, muito riso e ruído, ruído de pedidos e contrapedidos, de facas e garfos, de rolhas e tampas de decantadores. Gabriel começou a trinchar o segundo prato dos comensais assim que terminou a primeira rodada, sem se servir. Protestaram todos em alto e bom som, de modo que ele condescendeu tomando um belo gole de cerveja preta, pois tinha ficado com calor trinchando. Mary Jane se acomodou quieta para sua ceia. Mas tia Kate e tia Julia ainda titubeavam em volta da mesa, pisando uma nos pés da outra, ficando uma no caminho da outra e dando cada uma à outra desconsideradas ordens. O sr. Browne implorou que elas sentassem e comessem e Gabriel também, mas elas disseram que não havia pressa, de modo que, finalmente, Freddy Malins levantou e, capturando tia Kate, acomodou-a na cadeira entre risos generalizados.

Quando todos tinham sido bem servidos, Gabriel disse, sorrindo:

— Agora, se alguém quiser mais um pouquinho do que as pessoas vulgares chamam de farofa, que fale ou cale-se para sempre.

Um coro de vozes o incitou a começar sua própria ceia, e Lily surgiu com três batatas que havia reservado para ele.

— Pois bem — disse Gabriel afetuosamente, enquanto tomava mais um gole preparatório —, tenham então a bondade de esquecer que eu existo, senhoras e senhores, por alguns minutos.
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"The Dead" ("Os Mortos") é o último conto do renomado escritor irlandês James Joyce, parte de sua coletânea "Dublinenses" (Dubliners), publicada em 1914. A narrativa é ambientada durante uma festa de Natal na casa das irmãs Julia e Kate Morkan em Dublin, e a história é centrada no personagem principal, Gabriel Conroy.
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tradução: Caetano W. Galindo