Olhos De Caçador
António Brito
2014
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Nas memórias da casa velha da aldeia, relembro os fumos ásperos e coleantes que se elevavam, à noite, da chaminé, misturando-se com a névoa que agasalhava muros e casas. Que dava abrigo às famílias reunidas à volta do caldo quente, fervendo na panela de ferro. Não sei se alguma vez voltarei a casa mas, hoje, embebedo-me com as memórias de fragrâncias familiares, como os bolores das madeiras velhas, sempre presentes e perenes, atravessando o tempo. Memórias da cozinha onde flutuava o odor do azeite novo que o meu pai trazia do lagar do senhor da aldeia. Com ele, ungíamos as batatas tostadas nas brasas que chegavam ao prato, mais devagar que o nosso sono. Renascíamos com as goladas de vinho ácido, resvalando pela garganta, despertando novos e velhos, no jantar da consoada.
São estas memórias que me assaltam na véspera de Natal, abrindo um vazio que o melhor repasto do cozinheiro nunca poderá preencher. Só que, neste Natal, não haverá ceia que vá perdurar na memória. Não temos bacalhau ou rabanadas. Somente uma concha do trivial arroz aguado com salsichas trinchadas, despejado na marmita amolgada e acompanhado por metade de um pão. Não há vinho, e a cerveja é escassa. Não vai chegar para todos.
Durante a missa sob um céu sem estrelas, escondidas por nuvens de chuva, o capelão Tomé tentou compensar a ausência de comida no estômago, oferecendo comida ao espírito. Poucos compareceram. Preferiam a outra. A que aconchega a pança. Chega-se mais depressa ao coração do homem com a perna do frango, do que com a bolacha da hóstia.
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Antônio Brito nasceu em Coimbra e é licenciado em Direito. Colaborou em jornais de Moçambique e Portugal, trabalhou em multinacionais, e escreveu argumentos e guiões para televisão. O romance 'Olhos de Caçador', embora sendo uma obra de ficção, é baseado nas vivências africanas do autor na guerra de guerrilhas no antigo território português do Índico.