Perguntem a Sarah Gross
João Pinto Coelho
2015
_______________________
A primeira coisa a chamar-me a atenção na cozinha foi o cheiro. Um perfume incrível de tomate e cebolas refogadas, com alho, ervas e sei lá que mais. Esther encontrava-se à frente do fogão, de avental, ao lado de uma rapariga atraente, que usava jeans e uma bata florida. Olhavam as duas para mim, com um sorriso tão acolhedor como o aroma do cozinhado.
– Que vergonha… – admiti. – Fui a última a levantar-me.
– Essa agora – contrariou Esther, devolvendo os olhos ao fogão. – Nem dez horas são. Devia era ter aproveitado para descansar, isso sim.
Continuou a polvilhar o preparado com ervas variadas, refrescando-o de vez em quando com salpicos de vinho branco e provando o resultado após cada acrescento.
– Que cheirinho… – disse eu.
Esther sorriu e piscou um olho cúmplice à rapariga que cozinhava ao seu lado.
– Apresento-lhe a Meredith. É um doce. Acredite que não é fácil encontrar nesta cidade quem queira trabalhar ao domingo. – O som inesperado do fervilhar vindo da panela concentrou novamente a atenção das duas, que se apressaram a reduzir a intensidade da chama. – Lume brando, querida – disse Esther a Meredith. – O lume brando é sempre o melhor tempero.
Ao ouvir-lhe aquelas palavras, recordei-me do que a distinguira da sua maior amiga. A marca de Esther opusera-se sempre ao radicalismo com que Sarah se deixara apaixonar pelas coisas da vida. Mas, sim, era Esther quem estava certa. O fogo forte, quando lavra, não escolhe caminhos.
Entretanto, controlada a temperatura, Esther lembrou-se de mim novamente:
– Kimberly, por favor, coma qualquer coisa. Tem a mesa posta lá fora. Sirva-se do que quiser, já vou ter consigo.
Saí pela porta que me indicou e fui ter a uma lindíssima marquise em ferro, ao estilo Belle Époque. Para lá das vidraças, via-se o jardim que preenchia as traseiras da casa. Mais do que as flores, chamaram-me a atenção as árvores de grande porte que escondiam os prédios altos em redor. A meio da divisão, encontrava-se a mesa coberta por uma toalha e tudo aquilo que eu poderia desejar num pequeno-almoço. Sentei-me a olhar para o jardim e servi-me de leite ainda quente. Lamentei não ter apetite para experimentar todos os doces de fruta, pastrami e croissants à minha frente. Ainda me sentia abalada, chocada.
Esther apareceu poucos minutos depois. Despira o avental e vinha a limpar desajeitadamente as mãos a um pano da louça, enquanto mantinha presa debaixo do braço uma pasta de couro. Não pude deixar de reparar no seu olhar fresco. Apesar de ter dormido menos do que eu, a pele do seu rosto amanhecera luzidia. Sentou-se a meu lado e afastou as duas chávenas que tinha à frente para pôr a pasta que transportava. Depois de a pousar, esticou ligeiramente as costas, provavelmente por ter estado muito tempo debruçada ao fogão.
– A Meredith tem jeito para a cozinha e sei que posso deixar tudo nas mãos dela, mas o molho não. O molho não se aprende nem se ensina. Cada um faz à sua maneira. Cada casa, cada família, tem o seu, e isso para um italiano é sagrado. Que hei de eu fazer?
___________________________
João Pinto Coelho nasceu em Londres em 1967. Frequentou Belas-Artes e licenciou-se em Arquitetura, tendo passado algumas temporadas nos EUA, onde trabalhou num teatro profissional perto de Nova Iorque. Viveu a maior parte da sua vida em Lisboa, mas retirou-se há alguns anos para uma aldeia transmontana.